18/02/2006 17h54
Impressões Visuais
Rosa Pena


Sou a caipiríssima no final da tarde em Ipanema. A mistura perfeita do gelo, vodka e limão. Mexa devagarzinho entre seus dedos, saboreie com prazer e trace um bonito quarteto. Leia alto, o mar gosta de ouvir. E não estranhe se ele começar a fazer marola. É que ele adora quando você me namora.

Sou a porção de batatas salgadinhas que aumenta seu paladar. Mastigue com muita vontade e trace mais um quarteto. Leia alto, a brisa gosta de ouvir. E não estranhe se ela começar a assobiar. É que ela vibra com seus ensejos de beijos.

Sou o pôr-do-sol que se despede do dia. Olhe fixo: — Ficou hipnotizado? Agora trace um lindo terceto. Leia alto, o céu gosta de ouvir. E não estranhe se o astro rei reaparecer com força total. É que ele é bem sem-vergonha. Adora ser nosso voyeur.

Sou a lua que se insinua antes do anoitecer. Sorria para essa confusão do firmamento e trace mais um terceto. Leia baixinho, apenas para nós dois. E não estranhe se perceber que viramos um soneto. É que vemos poesia a qualquer hora do dia, mesmo quando os lúcidos afirmam que não existe mais sol, mar, lua, caipirinha.

Se algum dia você parar de ver, foi contaminado pelo vírus da lucidez.

Olhe! Uma revoada de margaridas. Pesque rápido uma pra mim, antes que algum sábio destrua-a com agrotóxico, ou descubra que vender o mar rende um bom negócio.

Publicado por Rosa Pena em 18/02/2006 às 17h54
 
08/01/2006 17h50
Louco?
Rosa Pena
Dizem que ele tem problemas mentais, pois vive num mundo diferente do nosso, os sábios normais. Criou algo muito próprio. Passa o dia inteiro numa fila de caminhões de uma grande cooperativa, catando todos os papéis que acha no chão. Analisa do seu jeito, não sabe ler, seleciona um bocado para rever depois e o restante joga fora na hora. No final da tarde ele esvazia quase totalmente os bolsos, guardando com a paz de um sorriso, só os coloridos. No outro dia está lá novamente para a mesma rotina. Encher e em seguida descartar os sem cor.
Sempre que iniciamos um novo ano prometemos:
—Novo ano, novos projetos, mas já no segundo dia estamos remoendo coisas do passado, não "esvaziamos nossos bolsos", ficamos carregando "papéis antigos" descoloridos, que ocupam o lugar de novas coletas. Este sujeito chamado de "maluco" arrumou a fórmula de sublimar o peso do passado e dar espaço em sua vida para enfrentar o hoje, ainda que parecido com o ontem, mas não é. Será!?!
Dizem que ele é louco ou louco é quem lhe diz?
Publicado por Rosa Pena em 08/01/2006 às 16h54

Publicado por Rosa Pena em 08/01/2006 às 17h50
 
08/12/2005 23h56
Silêncio amoroso
Rosa Pena


Eu fiz o lombinho pra ceia, pois peru só no natal.

Eu sei que um anda pra frente e o outro anda pra trás.

Eu comprei uva branca e vesti calcinha vermelha.

Eu sei que uma dá fartura e a outra dá sorte no amor.

Eu coloquei um dólar no sutiã e vesti-me de branco.

Eu sei que um traz dinheiro e o outro traz paz.

Eu fui para a praia levando flores e champanhe.

Eu sei que o mar merece florir e o espumante dá frisson.

Eu pulei com o pé direito no chão e o esquerdo no coração

Eu sei que um é pura superstição e o outro sempre pulou contigo.

Eu abracei até o desconhecido na multidão.

Eu sei que nessa data todo mundo fica igual.

Eu só não gritei o quanto eu te amo, mas eu sei que você sabe que sempre eu vou te amar, com ou sem lombinho, uva, calcinha vermelha, dólar, vestido branco, mar, espumante, multidão ou solidão.

Muito amor emudece.

Publicado por Rosa Pena em 08/12/2005 às 23h56
 
08/12/2005 23h43
Assim caminha a humanidade
Rosa Pena

Esta semana foi realizada mais uma prévia de nosso natal. Natal 2005. Senti como um mini flashback das prévias anteriores. Somos uma família numerosa e tendo em vista que perdemos nossos pais há poucos anos, passamos a ficar literalmente tontos, sem saber como organizar estes eventos. Em 2001 foi triste. Todos sem estímulo. A ausência deles estava muito latente, não rolou nem o tradicional quebra pau tão habitual nas famílias. Nos anos seguintes a vida foi voltando ao normal e as cadeiras desocupadas começaram a ficar preenchidas pela novíssima geração. Este ano resolvemos que vamos arrasar. Afinal, agora temos nossos sobrinhos-netos.
A prévia dessa semana já está delineando como será este natal. Minha família é grande e é a big family.
Minha irmã mais velha é procuradora de justiça, separada, sem filhos, uma causídica de plantão 24 horas por dia. Procurador é aquele que procura defeitos? Ganha bem pra cacete, mas vive estressada por falta de um. Minha outra irmã é gerente de produção de uma boutique, sempre histérica com o mercado, atualmente recém-casada. Mãe dos que já nos deram a nova versão de família. Nossos sobrinhos-netos. Ela vive preocupada com os modelitos de tudo, se está in ou out. Natal tem moda? Eu sou a caçula. Professora, casada com uma filha. Depois que ela cresceu eu fiquei burra. Estranho demais este fato. Os filhos crescem, os pais emburrecem. Nada tenho a ensinar e muito para aprender. Agregue-se a este quadro cunhados e cunhadas, os maridos e mulheres dos sobrinhos, sogros e sogras, ex- maridos que viraram amigos, amigos solitários e solidários só no natal. Agora temos também namorados de filhas! Somando tudo dá pra lá de trinta pessoas. Começamos a resolver o local, já que não temos mais a casa de papai. Optamos por maioria absoluta a casa de minha irmã mais velha, a procuradora rica. Ela diz que é injustiça, pois é uma só pessoa. Sabemos que é injusto, mas fazemos chantagem emocional dizendo que ela é a matriarca da família, a mais "ponderada", a substituta da mamãe, a abnegada, etc. e tal. Resolvido esse item. Aleluia.
Agora vamos à ceia e aos presentes. Quem vai levar o peru? De quantos quilos? O pau começa a quebrar. O peru rola de mão em mão, ninguém quer fazer um peru enorme. Ouço meu novo cunhado, gênero engraçado babaca, fazer brincadeiras imbecis, dizendo que somos frígidas, não queremos peru. Aviso a ele que peru rima com vai tomar no.......!
Vencida, Lourdes uma das agregadas, fica com o bendito. Vai fazer um peruzão! Bem, ainda tem o presunto, a farofa, a maionese, fora bolinhos de bacalhau e outros milhares de petiscos para antes da ceia. Falta também artigos natalinos caríssimos, que as crianças detestam e eu idem. Chamam de coquinhos, para abrir é um saco e suja tudo, mas enobrecem a mesa, lindos de morrer!!!!!!!!!! Hum... As tâmaras, damascos, tudo bem típico de nossa cultura tropical. Arranjo de frutas frescas e as sobremesas! As mouses! Puts!Rabanadas, castanhas, castanhas!!!!!!!! Ouço o grito de meu novo cunhado...Como imaginar um natal sem castanhas? Castanhas são essenciais em nossas vidas! Alguém pode imaginar o mundo sem castanhas? Devia fazer parte da cesta básica. As bebidas... Todos tomam cerveja e refrigerantes, mas no natal além da cerva tem que ter vinhos e champanhe. Espumantes finíssimos. O pau já está comendo e ainda não chegamos aos presentes. Grito que o item presente será o último, por ser um tópico extremamente problemático. Ano passado foi amigo oculto, mas parecia pelos presentes que era inimigo à vista. Tento avisar que não dêem mais meias ao vovô Tony, pois ele já tem contadas por minha filha 72 pares lacrados e está com 95 anos; não terá tempo de usar todas. Que tomem cuidado com aqueles presentes cíclicos (os inespecíficos), que acabam voltando para as mãos de quem deu inicialmente. Ouço ao longe discussões paralelas. Agora já se fala do Lula, da Malu Mader. Dispersão geral. Nada resolvido e o consumo de cerveja da prévia está altíssimo. As metas prioritárias abandonadas. Percebo que novamente ficará tudo para as vésperas do natal, resolvido às pressas pelo telefone. Que novamente vovô ganhará meias, meu tio com sua vasta barba loção pós barba; eu, cds e livros que já tenho; minha filha blusinhas manequim 38, ela usa 42.
Começo a rir e percebo que minha saudade não é mais triste. Acho que finalmente comecei a encarar a vida de frente, mesmo com a ausência dos meus inesquecíveis queridos.
O mundo não acaba com as trocas de lugar. Daqui há trinta anos eu ganharei dezenas de alfazemas e comerei sal escondido. Ouvirei ao longe minha neta discutindo quem vai fazer o peru.
Sorrirei; finjo que esclerosei.
Vovô Tony sorri assim. Assim caminha a humanidade.


*adaptada da original em 2003 ( então é natal/ rosa pena)

eu e o tio Zé

Publicado por Rosa Pena em 08/12/2005 às 23h43
 
04/12/2005 22h00
Isto é virtual e tem muita cara de pau.
Em 2003 escrevi a prosa "Isto é virtual?".Ela tomou conta da net na época. Tantos se emocionaram, acho que mais do que eu. Será que essa paixão é a responsável pela retirada de minha autoria? Paixão cega, né? Não bastasse isso ainda trocaram o sexo da tia, por TIO e o título por mundo sei lá o quê.
Agora eu me pergunto: Tirar autoria é ser virtual OU É SER MUITO CARA DE PAU?
Essa prosa consta de 3 livros editados, 6 revistas publicadas e está em 19 sites. Só não acha a autora quem não quer.
*
Isto é virtual ?
Rosa Pena


Entro apressada e com muita fome na confeitaria. Escolho uma mesa bem afastada do movimento, pois quero aproveitar a folga para comer e passar um e-mail urgente para meu editor.
Peço uma porção de fritas, um sanduíche de rosbife e um suco de laranja.
Abro o laptop.
Levo um susto com aquela voz baixinha atrás de mim.
— Tia, dá um trocado?
— Não tenho, menino.
— Só uma moedinha para comprar um pão.
— Está bem, compro um para você.
Minha caixa de entrada está lotada de e-mails. Fico distraída vendo as poesias, as formatações lindas. Ah! Essa música me leva a Londres.
— Tia, pede para colocar margarina e queijo também.
Percebo que o menino tinha ficado ali.
— Ok, vou pedir, mas depois me deixa trabalhar. Estou ocupadíssima.
Chega minha refeição e junto com ela meu constrangimento.
Faço o pedido do guri, e o garçom me pergunta se quero que mande o garoto “ir à luta”. Meus resquícios de consciência me impedem de dizer sim.
Digo que está tudo bem, que o deixe ficar e traga o pedido do menino.
— Tia, você tem internet?
— Tenho sim, essencial ao mundo de hoje.
— O que é internet?
— É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar. Tem de tudo no mundo virtual.
— E o que é virtual?
Resolvo dar uma explicação simplificada, na certeza de que ele pouco vai entender e vai me liberar para comer minha deliciosa refeição, sem culpas.
— Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos pegar, tocar. É lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer, criamos nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que ele fosse.
— Legal isso. Adoro!
— Menino, você entendeu o que é virtual?
— Sim, também vivo neste mundo virtual.
— Nossa! Você tem computador?
— Não, mas meu mundo também é desse jeito...virtual.
Minha mãe trabalha, fica o dia todo fora, só chega muito tarde, quase não a vejo. Eu fico cuidando do meu irmão pequeno que chora de fome e eu dou água para ele imaginar que é sopa. Minha irmã mais velha sai todo dia, diz que vai vender o corpo, mas não entendo pois ela sempre volta com o corpo. Meu pai está na cadeia há muito tempo, mas sempre imagino nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos, ceia de Natal, e eu indo ao colégio para virar médico um dia.
Isso é virtual, não é tia?
*

ps: Esta crônica consta de meu livro preTextos, editora all print, entre outros.Registrada na biblioteca nacional desde junho de 2003,circula na net com autoria desconhecida, modificada, mutilada, com o título ridículo de mundo virtual.
Rosa Pena

Publicado por Rosa Pena em 04/12/2005 às 22h00



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