22/11/2005 20h50
Tintim
Rosa Pena
— Você tem medo de morrer?
Ela foi taxativa, direta, sem papas na língua, como é sua marca registrada.
Eu disse que tinha medo porque ainda tinha muita coisa a ser feita.
Perguntou-me o que queria tanto.
— Minha filha, quero vê-la formada. Meu livro, quero vê-lo publicado.
Respondeu com tranqüilidade que isto seria executado independente de minha presença. O que eu já havia plantado ficaria.
— A morte é uma continuidade da vida — falou como se já houvesse experimentado esta travessia.
Havia um tom de certeza em sua voz.
Tentei arrumar argumentos que justificassem o meu medo da morte. Calei-me e fui refletir.
Estranhamente esta conversa aliviou-me o coração.
Tenho medo dela?
Não, não é medo do desconhecido, é medo de perder o conhecido.
Então, Rosa, pare de achar a vida, tua velha amiga, uma chata. Assuma que gosta dela, apesar da violência, do desmatamento, da falta de grana, da insônia, da injustiça, de Pinochet, de Idi Amin Dada, do Beira Mar, dos Expeditos das novelas globais, da chicória, de idiotas vestidos de sábios, de egoístas com capas de generosos.
Tem tudo isso, mas tem Jobim, lua, mar, churrasco, couvert do Fratelli, filosofia de boteco, amores impossíveis, golfinhos, Manuéis Bandeiras, memórias da Marlene Dietrich, tesão pelo Al Pacino, calcinha da Victoria Secret, Estudantina, lirismos despudorados do Nelson Rodrigues, pão quentinho com ovo frito.
Realmente tenho minhas dúvidas se quero viver só para ver a formatura de minha filha e o meu livro virar mania nacional.
Acho que quero a vida pela vida, mesmo que depois reclame que ela foi malvivida.
— Garçom! Um chope estupidamente gelado e um ovo rosa com muito sal.
Tintim à vida.
Começaria tudo outra vez, mas certamente teria virado a mesa no momento certo.
2002
livro/ PreTextos
foto/rosapena & Al Pacino/ by silsabóia
Publicado por Rosa Pena em 22/11/2005 às 20h50