A bola da vez
Rosa Pena
 
"Somos possuídos exatamente por aquilo que julgamos possuir”
Michel Maffesoli
 
 
Escrever sobre cotidiano parece que se transformou em se falar só do agora, no calor dos acontecimentos, e acaba-se por perder a noção de risco (até onde podemos destruir com palavras a vida de outros?). A ética some e por uma notícia bombástica nos transformamos em cúmplices do diabo, paparazzos do pensamento de alguma celebridade.

Cheguei de viagem com uma vontade danada de escrever sobre o peixe-boi, sobre minha diarréia de tanto comer tapioca entupida de leite de côco, da overdose de moqueca com dendê, da invasão dos italianos no Venta Club Pratagy, da lagosta inesquecível que saboreei na praia do francês, do motel cêquesabe. Fiquei dez dias sem ler jornal, sem ver TV. O celular só foi usado para falar com minha filha. Exorcizei a tecnologia. Ela que fosse possuir outro urbano nesse período.
Na volta, porém, dentro do aeroporto, tinha um jornal e a espera pelo vôo me fez abrir. Satanás recuperou sua vaga. Nele a manchete já não era mais a menina Isabella, ela estava na décima página. Era o Ronaldo e suas práticas sexuais. Pensei novamente na garotinha. Será que ela vai ser esquecida?


Não é o povo que tem memória curta, é a notícia jovem que leva a amnésia e assim, os crimes que merecem a punição dos culpados passam a ser ignorados pela mídia, pois não atraem mais audiência. Existe uma necessidade, quase vontade que aconteça um novo crime, algumas novas barbaridades, doenças em epidemia, gostosas do BBB peladas, algum rei gay, uma nova guerra, pois a do Iraque perdeu a vez. Afinal o Fantástico tem que ter assunto para entrevistas exclusivas.

Escrever com alegria atualmente parece alienação. O negócio é transpirar ódio com ou sem razão. Raiva pelo sucesso de alguns, vontade de humilhar e afrontar, curiosidade mórbida, desejo de tomar conta da vida alheia (para esses segue a sugestão de comprarem dois gatinhos, pois eles possuem sete vidas cada um, quatorze pra tomar conta preenche bem o tempo). Enfim, desgraças e escândalos satisfazem bem mais uma grande parte da população. Marrom com gotas de sangue!


Então mundo, algum motivo de felicidade por aí? Alguma coisa que entusiasma a vida? Agora já não mais importa quantas Copas nós ganhamos com o Fenômeno. Importante mesmo é devassar a vida dele. O chute quem dá é a imprensa e a sociedade aplaude. Ele, que era o dono da redonda, virou a bola da vez.

Deixo para outro momento a narrativa alegrinha de minhas aventuras pelo nordeste. Fiquei mal ao ver o Ronaldo tão cabisbaixo por ter cometido um erro tão grave, mas tão grave ao se envolver com travestis no século XXI, que até sufocou a notícia do pai austríaco que torturou a filha por mais de duas décadas.
 
Estou com uma saudade arretada dos calombos de muriçoca que levei por lá, daquele homem simples que me respondeu o porquê do nome do motel que falei lá no início, entre outras conversas fiadas. Coisa boa bater papo com quem passa o dia no canavial sem tempo de ver a Globo. Ele me contou que a idéia surgiu entre os cabras-machos da região.
Perguntavam pra donzela. — Onde você quer ir?
Elas respondiam: — Cê que sabe.
Bem que podiam abrir um aqui. Sempre respondo isso pro meu amor.
Ah! Meu final vai pro Ronaldo. Valeram os gols que você deu para todos nós brasileiros.
 
 

 
 
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 05/05/2008
Alterado em 29/09/2014
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