Saudade rende muito mais que qualquer investimento!
 

Rosa Pena

 

 Querida Leda.

 

Hoje você está completando setenta anos e não nos falamos há dez.
Aquele mal começou a roubar você de nós em 1991 e conseguiu tirá-la (de vez) do circuito em 1998. Mas insisto em deixar registros do que tem acontecido pelo mundo em seu criado tão mudo quanto você. Quem sabe você não viverá até a bendita cura desse Alzheimer? Quiçá não mais estarei por essas bandas para contar do meu jeito o que se passou nesses anos pós-dourados?

 

O século virou sem que eu beijasse o Chico Buarque. Lembra que jurei roubar um selinho dele até 2000? Não consegui, mas a luta continua. Vou aos shows, escrevo sobre ele e onde imagino que ele possa estar, eu tento chegar. Minha boca ainda não murchou de esperança.

Sua grande amiga, minha mamãe, se foi de repente nesse meio tempo. Fez a travessia (inventei um paraíso que vai de Penny Lane até o azul-turquesa) de forma tímida como ela sempre foi. O desejo dela de não dar trabalho para ninguém foi plenamente atendido pelo senhor do destino. Deve estar contando pro John minha tietagem alucinada.

 

Como terapia, para superar minha orfandade, virei definitivamente escritora. Publiquei até livros. Jorginho, seu marido, me deu a maior força, aliás, se existisse eleição para rei do carinho ele teria vencido de barbada. Ah! Devo confessar que dancei com ele algumas vezes em festas de família, pois vocês sempre foram “pés-de-valsa” e por mais apagado que ele tenha ficado sem sua partner, eu percebia que a música ainda mexia com todas as fibras dele. Também fazíamos ginástica no mesmo horário, mas foi por pouco tempo. Ano passado ele também atravessou a linha imaginária. Deve estar revelando pro George que eu o achava um tesão. O mais lindo dos Beatles! Num faz mal não, pois isso não é mais segredo. Tuninho já sabe da lista dos dez homens que me tiram do sério, inclusive daqueles que ainda não cortaram a fita azul. Chico continua encabeçando, seguido de Pacino e Clint Eastwood, que estão bem vivos (bem até demais). UI!

Religião? Muitos crentes pra poucos santos. O papa ignora o HIV, hepatite, herpes (usar camisinha é um tremendo pecado), então que se morra de AIDS, mas sem culpa. Católico recebe entidades, babalorixás lêem bíblias. Macedaram-se todos como o bispo. É Universal esse troço maluco!


O custo de vida permanece impraticável, assim como o analfabetismo, violência, drogas como causas e conseqüências. Ambição & ambição!
TR! Tudo de ruim! Conseguiram colorir nosso planeta de bege, daquele bem sem graça, cor da diarréia do tal rotavírus. Ah! Agora até virose tem rota, viu? E não é a 66!

 

Mas ainda assim não perdi o sonho. Não mesmoooooooooo! Sabe por quê?
Porque ele teimosamente volta nos olhos de minha Carolina, de seu neto Heitor (está um homem lindo) e mais adiante no sorriso de meu sobrinho-neto João Vítor, de apenas dois aninhos. Ele aprendeu a falar e todas as vezes que eu ameaço chorar, ele grita:
Carácolis! Num vai brincar? (em tempo: Carácolis não é plural de caracol. É palavrão disfarçado em gíria, daí ninguém reclama. Viva a hipocrisia!).

Então eu brinco de faz de conta. E nessa brincadeira revejo papai, mamãe, Jorginho, Tom, Elvis, Sabino, John, Drummond, Cecília, George, Hilda... Todos de mãos dadas cantando Penny Lane no resplandecente azul.

Acho que nesse seu sono profundo já vê o turquesa, pois sua alma fez o cruzamento sem aviso prévio. Não existe indenização pra coração? Mas nem precisa, pois estou riquíssima de nostalgia! Saudade rende muito mais que qualquer investimento.

Avisa lá do meu amor sem fim, sempre começo. Será que o Sabino sabe que virei cronista por causa dele?

Beijos em você e no pessoal todo que já chegou ao blue e vê o bege com dó!

 

Rosa

 

 

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Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 12/03/2008
Alterado em 03/08/2021
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