Chegadas e Partidas
Rosa Pena


Eduardo e Lúcia se viram na entrada de um bar. Ambos com olhar de indiferença, de tanto faz como tanto fez. Entraram juntos e tiveram que dividir a mesa.
Um alguém como eles, tocava num piano Tenderly. Se olharam aprovando a música. Um sorriso tímido e pediram as bebidas.
Ela olhou pro rosto dele e achou um tesão a barba por fazer.
Ele olhou para o chão e foi subindo até encontrar um joelho lindo.
No início faziam questão de passar casualidade e sorriam com esse acaso de quase todos os dias a noite no mesmo bar. Ambos artistas, desligados!!?
 Se encontraram assim quase um ano.
Se acostumaram com a coincidência, com selinhos e até tinham dito “te amo” como tchau de forma banal. Mas, ah esse mas... o perfume misturado foi entranhando nas roupas, a barba por fazer, o batom manchado no canto, virou vício. Ela desejou que fosse um pouquinho verdadeiro o carinho dito às vezes no fim de noite. Sai um “te amo”, junto com o último gole de gim no tchau, bem que poderia sair um beijo à vera. Nunca marcaram nada.

Naquela sexta ela ficou tensa. Fim de semana era improvável, mas não impossível que não se vissem.
Estava começando a sentir aquela urgência íntima, aquele desejo de grávida, comer morangos frescos colhidos por meninos virgens da Patagônia. Sim, desejos na gravidez requerem emoção, nunca são banais. Aquele poeta era coisa rara, era flor brotando no outono, era luz de luar dentro daquele bar fechado com cheiro de melancolia. Andava esgotada daquele falso néon.
Venha!
Tão envolvido estava em suas rimas, que ficou assustado ao perceber a chegada da noite sem ter ouvido a voz Lúcia. Sentiu falta dela, de seu cheiro de tinta, deu um sorriso para disfarçar seus sentimentos de si próprio. Desviou o olhar do papel, colocou um tênis e saiu. Bem que poderia ter um pouco de verdade no acaso.
Se viram na porta e o olhar foi como uma língua na boca.
A partir dali fizeram-se cúmplices na vontade, no desejo. Ambos sabiam que se iniciava o precipício, que realmente começou desde o início, quando cruzaram suas almas tão parecidas naquele bar. Resolvida a ser suicida, dá um sorriso maroto para o poeta, aproxima-se e encosta sua coxa na dele.
Agora sim eram um casal de verdade, onde a intimidade ficou por conta do silêncio indecente que reinava, apenas quebrado por um sussurro gostoso, quando aquelas mãos largavam a caneta e deslizavam suavemente na parte mais íntima dela.
Pintaram quadros, fizeram sonetos.
 Ela se sentiu Picasso. Ele se sentiu Pessoa.
Como toda fantasia que vira realidade, chegou quarta-feira de cinzas.
Lúcia ficou com um livro “Sem mais verões” dedicado a ela.
Eduardo com uma aquarela “Canções de inverno” inspirado nele.
No mais...
Fica com o porta- retrato de Cancun , mas quero a mesinha de Veneza.O filho tem guarda compartilhada depois de brigas homéricas no tribunal. Tem que dar a pensão direitinho se não é cadeia.
Tenderly é dinheiro no banco.
O bar virou pizzaria de rodízio.
Onde anda o encanto? No néon!

 
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 29/09/2021
Alterado em 01/10/2021





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