"Meretríssimo"
Rosa Pena
Conheci-o em uma festa surpresa que fizeram para mim . Nasci em um feriado nacional e geralmente fujo para a casa que tenho fora, pois além de não ser chegada a grandes comemorações, considero um presente, por si só, três dias ao ar livre, pé descalço, mexendo em plantas, curtindo meus cachorros.
No dia do meu niver, acordei e agradeci a Deus por estar viva e fui dar uma faxina no canil.
Na época, tinha cinco cachorros: Flick, Domenica, Berenice, Chopp, Rex. Todos eram da raça boxer, exceto Rex, um vira-lata sem-terra que invadiu meu latifúndio e foi aceito pelos companheiros. Simpático demais esse invasor.
De mangueira, escova, entretida no banho canino, nem ouvi a turma chegando.
Quando acabei a faxina, molhada e sujinha, fui guardar os apetrechos na garagem e dei de cara com a turma escondida ali.
Veio aquele parabéns em forma de chorinho, vindo de um cavaquinho. Afonso, um grande amigo meu, tinha organizado o evento e trouxera um grupo de artistas amadores para animar a festa.
Surpresa e feliz, abracei todos e fui apresentada a cada um.
Quem tocava o cavaquinho era um senhor de cabelos brancos, que chamou minha atenção de imediato, pois, para se desculpar por ter sido penetra, levara um presente para mim: um embrulho simples, daquelas embalagens feitas em casa, na última hora. Um lenço, uma bandana de propaganda da rádio litoral.
Adorei aquele gesto simples e, num reflexo, tasquei um beijo na testa dele. Ficou vermelho.
Partimos para pôr as cervejas no gelo, acender a churrasqueira, pôr as carnes, lingüiças, asinhas e corações, que surgiam em profusão das sacolas dos meus convivas.
A festa rola, o conjunto dispara no som. O senhor do presente é o maestro do grupo e, para a minha emoção, pede silêncio e começa a falar do saudoso Cartola. Oferece-me “As rosas não falam” e afirma cantando que tem certeza absoluta que exalam o perfume que roubam, pois acabou de sentir o aroma do furto. Lágrimas cismam de correr pelos meus olhos...
Ouço meus amigos dizendo:
— Mandou bem, meretríssimo!
Reparo que meu idoso violeiro reage ao estranho apelido com um sorriso franco.
Busco saber mais sobre ele...
Freitas fora advogado de renome, chegou a ser juiz e queria ser desembargador. Abandonado pela esposa, que o trocou por um garotão, depois de trinta e cinco anos de casamento, largou as leis e foi morar em Cabo Frio, trazendo apenas seu violão e muitas mágoas. Virou seresteiro e chama a ex de meretriz.
Não enfartou, reinventou a forma de viver sem sofrer. Ama a irreverência desta galera e assume de cabeça o apelido de meretríssimo:
— Sou corno, cachorro sem dono, mas sou feliz, gente!
Merecida felicidade, meritíssimo Freitas!
Este ano que passou, o violão estava sem dono.
Cartola, as Rosas deviam falar sim. Perdi a chance de dizer a ele:
-Valeu amigo, aprendi tanto contigo
2003/ Livro PreTextos
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 17/11/2005
Alterado em 13/01/2015