Perdi a minha?
Rosa Pena
Tento refazer em mim o desfeito, emendar meus rasgos com os restos de sonhos, inventar outra pele para cobrir a que ficou. Vida em ampulheta, a areia já desceu bem mais da metade e se antes descia lenta hoje parece que tem pressa em escorrer e findar de uma vez sua função. Eu que não sei nada dos mistérios insondáveis, mas acredito num fim bem diferente da pieguice do filme Benjamim: Encerrou! Se fez está feito, se não fez perdeu a vez. Perdi a minha ?
Pássaro ou voa ou mora em gaiola. Engaiolado é bicho sem asas, olhos enquadrados, passarinho sem céu, um canário que, apesar de tudo, não desiste de querer ser de raça. Belga, quem sabe. Canta e acha que é elite. Tem gente que também acha. Só voam (ambos) quando morrem, se acreditarem em paraíso com maçãs bem vermelhinhas, piscinas de iogurte.
Eu que não sei mais do uísque batizado com guaraná no fim de noite num bar do Leblon, meu Deus do céu que tempo bom, não sei mais das coisas bem simples, eu que esqueci que se joga dominó no meio da rua numa terça qualquer, enquanto em Wall Street os yuppies gritam felizes que a bolsa asiática despencou e a guerra ta ai, eu que deixei de ouvir o silêncio das borboletas para gritar por igualdade, o prazer das janelas abertas para receber a visita do ar fresco, eu que desaprendi a caminhar devagar, tenho pressa nem sei de quê, eu que não sei mais o que me vai por dentro a não ser uma ansiedade ansiosa cheia de vícios de linguagem.
Desejo, como desejo, o tempo restante da areia para me refazer cheia raça sem ser belga, adoro ser tropical, andorinha-do-mar, encontrar-me em alguma trama nova da vida, antiga em sonho, meu rosto tecido no índigo desbotado de tanto querer bem. Eu insisto, insisto e insisto em me reeleger musa.
Que seja das grandes burradas, da comida queimada, das olheiras sonhadoras, do amar sem ser amada, do meu menino do rio. Coração de eterno flerte... Adoro ver- te.