Quarta, meio-dia em ponto, eu liguei e ele não atendeu, quando reconheceu meu número no Bina. Jurei que seria o último telefonema e, para evitar reincidências, rabisquei bem o número que não cheguei a decorar. Uma da manhã, eu tentando ver o avesso do rabisco de encontro à luz, o vinho terminando e o Tito Madi me dando a maior força na fossa. Às quatro da matina o tinto acabou, parti pro branco seco e finalmente reescrevi o número. Ainda bem que CD não dorme. No dia seguinte minha cabeça lembrou-se do vacilo, levando-me a rasgar em mil pedaços a droga da rasura, e pensei seriamente em doar o Madi pro vizinho que reclamou da repetição. Fui trabalhar com umas olheiras terríveis e ainda tive que agüentar gracinhas de colegas, dizendo que a noite tinha sido o diabo. — Amor novo? Qual é o nome? — Tito (menti bem alto). — Mora perto? — Longe, anos-luz! Por volta das dez, liguei para casa e perguntei à faxineira se já havia esvaziado o lixo. Respondeu que sim, dei um berro e mandei ela perguntar ao porteiro se o lixeiro já havia passado. — NÃO... (falou assustada). — Graças a Deus! Desce, pega e guarda o lixo todo. — Tem certeza? — Absoluta! Às vinte e duas, eu montando o quebra-cabeça do número fatal, com um rosê horrível. Acho que era quase uma sidra, daqueles que se dá ao inimigo oculto no Natal. Deu um tremendo bode! Montadinho ele, o 011, e eu literalmente desmontada, percebi a inutilidade desse meu esforço. Melhor queimar e esquecer. Mas como se esquece um olhar apaixonado? Não consigo acreditar, nem que eu viva mil anos, que o amor se perde tão de repente. Rabisco, rasgo, até meto fogo, mas as cinzas ficarão em algum canto dessa insana memória, até porque não quero esquecer! Não acredito em vida sem as emoções passadas, não acredito, não e não! Madrugada de sexta, eu descubro que acabou toda e qualquer bebida da casa. Beberei álcool e acenderei um cigarro. Concluo: a queimar, queimo eu. Enfim, vou ouvir o Tito ao vivo! Funeral num sábado? Se der praia a galera vai ficar muito P da vida! Vou deixar pra domingo de noitinha o nefasto acidente, segunda é um dia de merda mesmo. Saio na madrugada para comprar um Beaujolais, desejo de moribunda é sagrado. Se me matarem num assalto, nem ligo. É lucro, pois ele vai chorar muito de culpa! Esbarro na delicatessen com um cara de barba por fazer. Uns cinqüenta anos, cara de cafa, jeans desbotado, uma Hering branca. Adoro homens assim! Ganho um sorriso e um telefone. Vou ligar sábado, sem falta. Afinal, tenho uma dívida de gratidão com ele! Salvou minha vida. Desculpe a mentira, companheiro Tito, mas ainda não cansei de ilusões. Nosso show privé vai ter que esperar!
(Inspirada na música de Tito Madi, "Cansei de Ilusões".)
LIVROUI!
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 14/10/2005
Alterado em 05/09/2014