Quantas faces?
Rosa Pena
"Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo"
Poema de sete faces/ Carlos Drummond de Andrade
Sobrou para a tia Rosa, sempre na última hora, arrumar uma fantasia que Felipe gostasse para a festinha de seis anos do seu amigo. Meu baú professoral de alegorias e adereços sempre foi concorridíssimo na família.
— Power Rangel?
— Não!
— O Anão Atchim em homenagem a essa sua gripe que não passa!
— Não!
— Peter Pan?
— Não e nem tenho nada verde!
— Viu! Quem manda não gostar de couve, espinafre, rúcula?
— Quero o mágico com a cartola, já disse!
— Cismou logo com o mais difícil e fora de moda. Agora é ilusionista e o cara nem usa mais cartola.
— Quero tirar o coelho dela.
— Vamos presos pelo serviço de proteção ao animal e mais, na páscoa que vem ele se vinga. Adeus ovos de chocolate.
— Tá! Esquece o coelho, mas a cartola eu quero. Tiro outra coisa dela.
Inegociável! Afinal que avó, tia-avó no meu caso, vence à vontade de um neto de cinco anos?
Sem saída parto para o centro da cidade, pois infelizmente não vendem cartolas nas esquinas como imagina meu sobrinho-neto.Bem que poderiam, né? Um litro de leite, duas bisnagas e uma cartola preta pequena!
Depois de enfrentar um metrô lotado e andar pra cacete, chego toda esturricada na loja de mágica.
Rapidamente escolho a dita cuja e curiosa como sou, começo a olhar os truques à venda. O vendedor percebe o meu entusiasmo e se dispõe a me ensinar. Totalmente envolvida nesse mistério, viro a irmã caçula do Felipe.
— Agora é minha vez de tirar as moedas de sua orelha!
Prestes a realizar minha grande façanha na área do extraordinário, ouço uma voz.
— Você é a Rosa?
— Sou! Falo sem olhar.
— Rosa Pena?
Desta vez olho e me deparo com um jovem pai de trinta e poucos aninhos, acompanhado de um menino pequeno que o chama de papai sem parar.
— Sim, nos conhecemos de que lugar?
— Sou seu fã. Eu li seus livros e sempre que posso entro em seu site. Reconheci pelas fotos.
Emudeço totalmente abobada, enquanto o garotinho pergunta para ele:
— Ela é celebridade???
Caio na gargalhada e finalmente volto ao chão.
Começamos a conversar de forma franca e alegre. Confesso aos dois meninos que meu ego bateu limite de alta, apesar de estar me sentindo ridícula de cartola na cabeça e tentando, em vão, tirar moedas da orelha do vendedor. Nunca imaginei ser reconhecida na rua como alguém "especial", que dirá escritora. Quem sabe se eu fosse assaltante ou um político lambão!
— Sou o Lucas, aquele que deixa recados em seu site, confessa rápido e sem graça. Sei o que se passa com ele, pois no virtual nos sentimos muito à vontade de confessar amor pelo autor, quando realmente o que amamos foi o texto. Não há compromisso de fidelidade ou eternidade nesse afeto momentâneo. Esse eu te amo é sinônimo de Bingo ou Gol. Ainda assim, fica uma cumplicidade bonita entre o autor e o leitor desconhecido.
Emudeço e vem Luzes da Ribalta em minha cabeça. Percebo um gostinho de sal em minha boca, depositária do que desceu de meus olhos sem que eu percebesse. Ele finalmente me dá um abraço com braços.
Nossa emoção é interrompida pelo vendedor, esgotado de ser coadjuvante, com moedinhas na gola da camisa.
Tento justificar, por falta do que falar, porque estou lá. Conto do sobrinho e blábláblá, por fim afirmo sorrindo, que escritor no Brasil pra vencer só se for mágico, então quero aprender com o Coelho, não o da cartola, mas o alquimista Paulo.
Ele dá uma sonora gargalhada e também começa a querer explicar o porquê da presença dele naquele lugar inusitado que acabou por provocar esse nosso tão inesperado encontro, sempre querido, porém nunca agendado. Eu o interrompo.
— Você não precisa dizer nada. Está dentro de sua morada, pois só um verdadeiro representante da magia consegue fazer uma escritora anônima e cinqüentona se sentir uma Hilda Furacão adolescente.
Novo silêncio para não se dizer palavras que só cabem numa tela.
Trocamos um beijo amigo e peço um autógrafo dele, que o deixa atônito. Vermelho assina em minha agenda. Um tchau ligeiro, fruto de minha súbita timidez, e vou pagar no fim da loja, enquanto ele escolhe algo pro filho. Olho de longe para fixar o momento, apesar de que a primeira dedicatória ao vivo de um fã incógnito, a gente não esquece jamais.
Bendita festa, abençoada fantasia. Hoje sonharei que estou no Caribe. Que venha o pirata que eu sou sereia, ainda que sem lua e sem conhaque, mas comovida como o diabo do Drummond.
Quantas faces tem a vida, Carlos?
14 de junho de 2007