Vidavalevivida
Rosa Pena
Titia morreu no carnaval, bem no dia em que o meu bloco ia sair. Minha prima ligou avisando, e, como nunca liga por motivos alegres, imaginei logo que vinha má notícia. Nely já nasceu baixo astral. Hardy, a hiena - ''oh dia, oh vida, oh dor, oh azar'' é seu ídolo. Sempre de ombros arriados, sempre derrotados antes da luta. Adora ler bula de remédio e obituário. Nas bulas, o efeito colateral, no obituário a causa mortis. Quando ouvi a voz agourenta, já fiz voz de gripe, aquela voz de quem está fodida, preparando um álibi para o que viesse e veio chumbo grosso. A mãe, minha tia-avó, que eu não via há mais de cinco anos, tinha morrido aos 98 anos. Desta vez ela tinha todo o direito do mundo de estar arrasada, mas não estava. Parecia, sim, feliz em atrapalhar o carnaval alheio.
— Mamãe morreu, Rosa. De repente!
— Puxa vida, que pena! Mas não tão subitamente, visto que com 98 anos, e com pneumonia, é previsível, não acha?
— É porque não é a sua. Respeite minha dor.
— Eu respeito, esqueci de falar meus sentimentos, aliás, ainda não deu tempo. O enterro é hoje?
— Lógico que sim! Às 17, no Caju!
— Não dá pra ser às 15, na Real Grandeza, em Botafogo? (o bloco sai às 16 de Ipanema, pensei)!
— Não vou mudar de cemitério para atender a pedidos de gente maluca.
— Nely, pode me agredir. Hoje você pode tudo. Vá, pode dizer que a vida é uma merda, que a alface atual mata, que laranja não tem mais vitamina C, que nenhum homem presta, que a net é só perversão, que todas as mulheres são vagabas, que o Brasil não tem salvação, que ficou solteirona por opção, que a juventude está perdida, que eu é que sou uma hiena, que tintura no cabelo envenena, que vou ter câncer de pele de tanta praia, que a tsumani foi aviso, que o mundo até já acabou e eu nem percebi. Era pra este dia seu discurso do dia-a-dia. Pena que tem gente que gasta toda a energia da vida apenas porque faltou um ovo na salada ou o salto do sapato quebrou. Hoje você não tem nem mais prato na mesa. Está descalça. Hoje sim é que era o dia da sua tão esperada tristeza. Chora à vera! Chora todas, chora muito, diz que vai se matar, que nada vale a pena. Hoje você é dona da cena, que pena! Depois passa sua vida a limpo, ela está há muito tempo no rascunho.
— O enterro mando realizar às 16, dá tempo de você sair no bloco? (ela sabia do evento! Ela sempre soube que existia algo de bom na vida).
— Dá sim, dá tempo pra nós! Simbora antes que passe demais da hora. Zera o que não viveu, e recomeça aos cinqüenta. Com os hormônios em ebulição? Garanto que você arrebenta na evolução!