Chico do paletó surrado, nunca deixou de usá-lo, todo fim de tarde parava no bar da esquina. Aos poucos ia se juntando um pequeno grupo para ouvir seus "causos" de infância nos confins, suas solitárias paqueradasdepois da viuvez, os peixes pescados por alguém que nunca tocou num anzol, as mulheres que amou para valer, o Deus com quem sempre conversou.
Duvidávamos daquelas histórias, mas admirávamos seu repertório, ora cômico, ora malandro, mas sempre poético. Nunca nada aconteceu sem lua cheia e sem mulher bonita! É fantástica essa poesia criada no asfalto por alguém que ganha um salário e ainda consegue dizer Aleluia por uma batida de limão. Puro talento. Ele foi criado tomando banho de cachoeira e se empanturrava no melado de cana. Nós só em chuveiro e correndo atrás de grana. Sociedade Diet.
Em fevereiro, em meio aos batuques, contou-nos com naturalidade um pressentimento:
- Ontem eu morri, deixei meu corpo e viajei para o céu, uma viagem rápida. Chegando lá falei com Ele que não era esse o nosso combinado, eu ainda tinha muito por fazer na Terra. Levar meu filho de volta para roça, conversar com os amigos do bar, transar com aquela dona loura ao som de um piano, beber um uísque doze anos (bebida com idade faça-me o favor), colocar minha poesia no papel. Não posso deixar minha obra incompleta jogada por aí.
Na metade desse mês, Chico realmente partiu. Foi sem drama, já tinha levado sua cria de volta procampo, já tinha provado a loura com Chivas.
E a poesia? Assinada só no seu dia-a-dia. Mas não foi isso que o fez fechar bonito seu ciclo de vida e o fez um grande poeta. O que ele não fez é o que tornou sua obra quase perfeita. Não foram de sua autoria o muro de Berlim, a explosão das Torres, o choro desenganado de um povo machucado, a fome, o analfabetismo, os planos de saúde que tiram os “planos” dos menos favorecidos de se tratarem, a contaminação da água, a falta ou o excesso dela, as queimadas, o furo na camada que detonou o planeta etc, etc, etc sem fim.
A verdadeira poesia está em não destruir a DELE. A Terra tem um autor. Indicar “O Jardineiro Fiel” ou “Cidade de Deus para o Oscar” é tentar despistar fraudes nos direitos autorais.
Meu bisneto reconhecerá uma flor?
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 23/03/2014
Alterado em 06/04/2014