Contida

  Rosa Pena


Existe uma liberdade nos excluídos, uma alegria franca e sem frescuras, um jeito inconsequente na maneira de viver, que realmente os fazem, por vezes, serem alvos da admiração dos “incluídos” da sociedade.
Nos excluídos não existe o medo do ridículo, não mais precisam usar máscaras de falsa inocência. Podem ser exatamente o que são, pois a crítica aos costumes não lhes impõe regras. Caso impusesse, eles se lixariam, afinal já se veem como o próprio lixo da sociedade.
Usufruem alguns prazeres que nós, os politicamente corretos, não temos a coragem de curtir.


Elisa é pobre. É muito pobre, paupérrima! Mora na Favela do Borel, aqui no Rio de Janeiro. Vive de algumas faxinas e de muitos favores. Tudo que teve um dia na vida... Perdeu.

Perdeu o direito de morar na Paraíba, onde nasceu, pois a seca não permitiu.
Perdeu muito cedo a família ou a família a perdeu.
Perdeu a chance de ler, já que nunca teve vaga em escola.
Perdeu a juventude e a beleza nos fogões industriais.

Perdeu o amado para uma boleia de caminhão.
Perdeu o único filho na greve do SUS.
Perdeu o útero em um diagnóstico não diagnosticado.
Perdeu as lágrimas nas perdas.
Perdeu a censura e a compostura, visto que nada mais tinha a perder.

Noutro dia, chovia torrencialmente, estava um calor insuportável, a cidade era um congestionamento só. Tudo parado.
Eu, dentro do meu carro, ar-condicionado pifado, janelas totalmente fechadas por motivo de segurança, suava em bicas, com o estômago clamando por comida.

Já perto de minha casa, vi Elisa próxima à uma carrocinha de cachorro-quente. De shortinho e bustiê, exibia com maestria suas estrias.Sapateava na chuva, usando óculos de sol, e fartava-se de um podrão (cachorro-quente que leva até purê de batatas e custa um real), dando sonoras gargalhadas com um menino, visto por nós, os incluídos, como um pivete, assaltante em potencial.

Tá legal, amiga, é uma droga ser uma excluída. Mas tem horas que a gente sente uma inveja dos diabos. Não poder isolar a blusa, cantar na chuva, cair de boca em um podrão, de preferência cheio de batatinhas fritas, cobertas de ketchup.
Rir da vida. Nós? Não podemos, não.
Devemos achar que tivemos sorte, muita sorte mesmo, por termos um diploma ostensivamente colocado na parede e sermos aceitos socialmente.

Quanto ao riso, amigos “incluídos”, sorriam apenas, e de forma contida, como mandam as regras da boa educação.

Em tempo... Já comi o podrão, e é ótimo!


 
2003
Livro PreTextos/Rosa Pena
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 09/03/2014
Alterado em 22/04/2020
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