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                                                          Rosa Pena 

 

Tinha apenas uma hora para chegar ao aeroporto. Seu corpo parecia uma bomba-relógio. No táxi, começou a rever o que estava levando e o que havia deixado. Tinha certeza de que havia colocado todos os seus vestidos de alça, não abria mão deles nunca; todos os remédios, não se acostumava com similares, muito menos genéricos, tinha grilo deles, já estava acostumada com a cara da embalagem tradicional, em remédios a gente tem que confiar, só fazem efeito se forem antigos amigos; documentos (trouxe todos ou lá é sem lenço e sem eles?); a sandália preta; aquele ratinho de pelúcia; o travesseiro rasgado; o CD dos Beatles; as fotos companheiras da night.

Não queria revirar o armário da memória, as gavetas das lembranças, a estante das reminiscências e mandou o taxista acelerar ao máximo. Não queria mais tempo para se revirar, não pretendia ficar novamente enfurecida com a constatação de que o atual coração é genérico, daqueles em que ela não confia. O antigo, aquele que adorava os vestidos de alcinhas, a sandália preta, o ratinho de pelúcia, o travesseiro rasgado, os Beatles, que botava o seu sorriso nas fotos, foi roubado por um traficante de heart.
Foi presa por atentado violento ao pudor, quando saltou do táxi, literalmente nua, sorrindo pra dedéu. O motorista afirma que ela se estressou no engarrafamento e saiu jogando tudo pela janela.
 
*Atentado violento ao pudor (Código Penal Brasileiro)
 


LIVRO UI!

Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 31/08/2005
Alterado em 05/12/2009
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