Foto · 'Sem título', de Ricardo Araújo

Meu partido, é um coração partido

 
Rosa Pena

 

Usava roupas despretensiosas, cabelos desalinhados (por vezes propositalmente) olhava os passantes com um ar blasé, convidava amigos para um café (chope era para desinteirados), fumava com um prazer orgástico, odiava academias, tinha plena consciência dos problemas sociais para se preocupar com um quilo a mais ou a menos (também era magra), nunca beijou alguém que não amasse, não era careta, nem modernosa. Era Chico Buarque, Drummond, Woody Allen.

Queria de qualquer maneira mudar o mundo.

Seu rosto alternava alegria e tédio, tinha uma alma um tanto dramática, era muito carinhosa com quem simpatizava, irônica com os falsos sabichões, debochada com os de ar intelectual fabricado, cheios de livros embaixo do braço, frequentadores do cine Paissandu, cinéfilos de ocasião no Estranho mundo de Bergman, mas, intimamente, loucos para ver Miss Universo, de preferência as venezuelanas, pois esse país é o maior exportador do mundo em Miss.

Jamais admitiu o machismo e sempre apreciou homens educados, que não falam alto nem tentam passar a mão na acompanhante no primeiro encontro. Um gentleman antenado (dificílimo de achar). Um homem sem exageros físicos (sarados em excesso) e sem paranoias culturais ao ponto de olhar de banda uma pergunta quase óbvia, mas que a resposta eventualmente fugiu.

Queria mudar o mundo.

Amava praia, porém ciente que o outono é muito mais coerente com livros, pensamentos profundos, silêncio das línguas cansadas (discursos imbecis esgotam), retrato branco e preto, tédio com babaquices de quem gosta de aparecer, enfado com amantes de rodeios, samba sem raiz (atual pagode). Pressentimento do surgimento de" Luans Santanas”.

Displicentemente sofisticada, levando as coisas mais a sério do que mereciam, tragando com muito prazer seus dois maços de cigarro por dia, acreditando no politicamente correto (se era político como poderia ser correto?), sem culpas, porém mais passional do que hoje.

 
 Queria mudar ...

Deixou de ser filha para ser mãe. Depois virou avó. Parou de fumar (garante que volta se viver até os setenta), passou a ver que a vida pode ser enfadonha, mas a morte é feia e chata, pois é de uma certeza absoluta, daí perde a graça.

Bons tempos aqueles em que era fácil ser uma garota nouvelle vague, bebendo leite em garrafa no gargalo, sem tantas viroses do além, sem tanta gente saindo do armário, cômoda, criado- mudo. Hmmm hum... Saudades em sépia.

Quem a mudou foi o mundo!

Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 25/10/2012
Alterado em 26/10/2012
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