Bonito D+
Rosa Pena
O telefone tocou. Ela atendeu, mas ninguém falou. Não ventava, porém a penugem de sua perna anunciou mudança de tempo, não externo, interno. Arrepios de calor.
Ela desligou depois de segundos de total silêncio, e quase imediatamente o feiticeiro tocou novamente. A voz apenas perguntou da onde era.
Ela quase disse que era da casa da mulher que o amava. Ele, com pouca naturalidade, perguntou como ela estava.
Como se responde a um grande amor que o rio não tem mais ponte, que o perfume das flores está vencido, que o pássaro emudeceu, que o mar não tem mais sal, que São Jorge fugiu da lua? Apenas disse:
- Tudo bem comigo, e contigo?
Falaram do trivial, da corrupção, da chuva, do frio, da gripe.
A ligação caiu subitamente, assim como a intimidade deles havia caído já há algum tempo. O fone tocou novamente. Desta vez ela atendeu com vontade de gritar versos e nomes feios. Meias de nylon, batom vermelho vieram na sua cabeça. Quase sussurrando perguntou baixinho seu nível de importância na vida dele. Ele respondeu que era muito. Apenas amigos, ela concluiu rápido por ele:
- Mais, bem mais, respondeu o dono da voz.
A "antisupermulher" percebeu pela primeira vez a intensidade do sentimento dele, o inaudível canto do guerreiro que não pode se entregar por inteiro. Despiu as imaginárias meias e manchou o telefone com o vermelho do seu batom veneno. Nada mais conseguiu ouvir, exceto um “eu te amo” dito baixinho por ele no final da conversa. Idem eu, sussurrou ela. Foi a primeira e a última vez que ele disse as três palavras mágicas.
Delicioso perfume de rosas espalhou-se pelo ar. O trinado do canário ecoou pela casa, e a vontade de salgar o corpo nu no mar foi enorme.”Você deságua em mim... E eu oceano.. E esqueço que amar... É quase uma dor... Só sei viver... Se for por você!”
Naquela noite, de lua cheia, ela brindou aos amores imperfeitos, cheios de defeitos, pois se perfeito não é amor. Apenas São Jorge de testemunha.
No dia seguinte acordou com o barulho das buzinas. Não se irritou como sempre.
Pensou na pressa do Tom. Versos não podem esperar passar o engarrafamento.
Que tempo maluco! Neve vira areia tão de repente.
"Você que é bonita demais
Se ao menos pudesse saber"
Só tinha de ser com você: Antônio Carlos Jobim
Julho de 2005