*Poderoso Chefão *
Rosa Pena
Carmem sempre o amou, mas ele apenas aceitou este amor. Nunca conseguiu corresponder.
Por acomodação ou gratidão ele ficou ao lado dela, afinal havia sido ela a mola mestra que o impulsionou a ser um quase sucesso profissionalmente, um homem bem aceito socialmente, uma pessoa enquadrada nos padrões estabelecidos pela humanidade como do bem, um belo espécime da raça humana.
Uma pedra bruta que Carmem lapidou durante os primeiros 15 anos de convívio, pois, no início desta relação, quem havia estudado, quem era respeitadíssima nas paradas era ela.
Hoje, ele sabia falar com fluência, sabia fazer as escolhas certas no menu do restaurante chique, conhecia tudo de tudo, de música a literatura, chegando a ensinar à antiga mestra desde a roupa adequada para cada ocasião até a crase da pontuação. Havia virado o big man, um fodão. Verdadeiro poço do saber .Poderoso chefão.
Ela, muito por amor e mais ainda por insegurança, aceitou aquela humilhante situação de inferioridade perante o mundo e principalmente perante os filhos.
Então, ele ditava as regras sociais e domésticas. Papai sabe-tudo. Administrava as finanças do lar, até mesmo o talão de cheques dela, e o momento em que ela podia conversar no telefone. Diariamente, Carmem era submetida ao Tribunal da Santa Inquisição, caso ele saísse para as compras ou para averiguar o saldo bancário dela. No mais, ele não saía. Presidente executivo do lar.
Aposentado, ah!, só mulheres casadas com aposentados conseguem entender. Havia virado o manda-chuva da vida, o crítico de cinema, o expert em música, o técnico de futebol, o pai herói, o genro dos sonhos, o tio engraçado, o parâmetro para nivelar qualidades, o profeta, aquele que sempre sabe o que vai ou não dar certo. Um verdadeiro artigo de luxo, aprovadíssimo pelo Inmetro.
Ela, no desespero, encontrou como saída de vida a internet. Necessitava de aprovação. Virou freqüentadora assídua do mundo virtual. Ali era amada e respeitada.
Ele, nesta parada, não se deu bem. O Gates foi mais inteligente que o sábio man. Assim, ela, desta vez, não o ensinou a usar o micro e por isso a comunidade virtual não usufruiu "ainda", o que é uma verdadeira lástima, os ensinamentos desta verdadeira enciclopédia ambulante.
Carmem passou a viver na net e para a net. Viciadona. Carinho vicia, e ali era o lugar onde ela o encontrava, onde o esporro ela deletava, onde era respeitada, quase amada.
Então, o que antes era apenas um casal com filhos passou a ser uma quase suruba intelectual, ménage à trois sem sexo: Carmem, o man e o PC, até que o man resolveu implicar com isso. Tendo em vista que ele não tinha o domínio sobre aquele assunto, não conseguia exercer sua autoridade plena, resolveu fazer da obra literária dela o Índex, relação dos livros proibidos dentro da família e dos conhecidos.
Estabeleceu que o micro era seu rival e tinha ódio mortal dele. A net era coisa do demônio.
Quando o PC falhava, dava erro fatal, ela chorava e ele tinha orgasmos filosóficos com o fato. Ironizava, ficava sarcástico, com cara de júbilo ostensiva. Deitava e rolava na tristeza dela. Vencedor, era como se sentia, e mostrava a pia num indicativo de que era aquilo que ela merecia.
Carmem sofria, mas não conseguia abandonar a escrita, sua última e tardia alegria. Varava noites sorrindo para seu amante-amado-amigo micro. Ele, com ódio. Ódio aberto, declarado, demonstrado a cada minuto, destilando veneno até em festas que seriam de júbilo para qualquer casal, como o casamento do filho.
No dia da cerimônia, ela achou por bem contar aos seus amigos virtuais a felicidade de ver o filho médico entrar na igreja de braço dado com ela. Eles diriam que ela estava linda. Colocou a foto na net e resolveu relembrar intimamente seu momento da chuva de arroz, ao som da música que havia sido tema deles.
Naquela noite, como sempre fez, ficou direto no micro, mais melancólica que nunca. O marido dormia e roncava profundamente.Mais uma noite passando, menos uma noite em sua mal vivida vida.
Ele acordou cedo com o som que vinha do maldito rival, tocando "se você quer ser minha namorada". Enfurecido, partiu para a sala do micro. Desta vez ela tinha ido longe demais, pensou ele. Vai ter um corretivo de primeira.
Partiu com tudo para a briga. Desta feita, não teria platéia, pois todos os filhos estavam casados. Mas teria a vítima, o quanto lhe bastava para dar vazão à ira.
Se deu mal desta vez, man!!!!!
Encontrou apenas a poetisa, com a cabeça baixa batendo no teclado, as mãos já arroxeadas, o coração silencioso. Na tela, a palavra amor rimando com dor, últimos versos de quem queria ter sido "amada, mais amada pra valer."
17 de janeiro de 2003
"Uma palavra posta fora do lugar
estraga o pensamento mais bonito."
Voltaire, escritor francês
Livro/Eu & a net
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 02/02/2005
Alterado em 17/10/2008