Passe da Linha
Rosa Pena
"Caldo de feijão, um vatapá, um coração
Boca de siri e um namorado mexilhão
E água de benzer, linha de passe e chimarrão"
"Linha de Passe", João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc
Encontrei o Marcos, meu pequeno vizinho de trinta anos que agora é médico, na praia. Para mim até ontem ele era aquele menino que sonhava em ser cantor e tinha medo de sangue. Virginia Woolf escreveu que depois de uma certa idade o dia demora a passar e os anos passam voando. Estou nesta idade.
Deixo passar ou passo no compasso?
Ele me contou que a Joana, outra menina do condomínio, que brincava de Barbie com a minha filha — ambas amavam fazer modelitos bem tchã para bonecas, mas detestavam arrumar a casinha delas —, tinha se formado em arquitetura e até já havia se casado. Tomei um susto. Lembrei-me do Pedrinho que sonhava em ser sapateiro, não só por adorar a arte, mas porque Seu Orlando, da pequena sapataria da esquina, sempre disse que venceu sem estudos, então como ele detestava matemática, optou por essa vocação, para se livrar das contas de divisão. Pedro virou desenhista industrial.
Olhei minha filha saindo da água, agora uma advogada responsável, que antes odiava ouvir que leis foram feitas para ser cumpridas. Queria ser artesã da feira hippie em Ipanema, sem documentos e muitos balangandãs. Ama até hoje criar uma biju.
Dei uma mirada em meu marido, que se imaginou piloto de caça, depois baterista da pesada e virou administrador de empresas.
Agora queria eu ter um espelho para olhar-me, pois sempre sonhei em ser a Diane Keaton dirigida pelo Woody Allen, depois uma diretora de teatro bem foda. Acho que uma carnavalesca já teria me bastado, mas virei professora. Fiquei quieta, vendo as faces sorridentes de nós todos. Como sentir alegria, se os sonhos não foram plenamente realizados?
A resposta veio junto com o sanduíche natural. Um rapaz que conhecemos da praia, faz uma salada de ovos como ninguém, mas já avisa há quatro anos que é só até conseguir ser campeão mundial de surfe. Quando olhei pro rosto alegre dele, sem frustração, e o sanduba cada vez mais caprichado, descobri que alguns sonhos devem ficar nesse estado, pois se realizados inteiros no exato momento do imaginado, o que sobra pro depois da gente?
Pode ser "síndrome de Poliana”, mas é bem melhor do que viver de cara amarrada, se sentindo injustiçada no ar-condicionado. Síndrome de Hard haha "Oh Vida, Oh Azar!”?
Aldir Blanc é doutor, médico psiquiatra e mais, muito mais, é um puta compositor. Fez, entre tantas, O Bêbado e o Equilibrista, pelos motivos políticos que todos nós sabemos, mas ele veio na minha cabeça imediatamente, talvez porque o Aldir seja um bêbado de sonhos e com toda fama que tem, vive se equilibrando de forma tão bacana. Rádios e gravadoras se esquecem dele, mas não roubam seu regozijo. Vai à feira livre toda sexta, toma cerveja com sardinha frita, ri muito e conversa com quem lá estiver. Convida todo mundo pro seu bloco de rua. Sai sempre com a bandeira do Vasco. O time ganhando ou não, ele grita campeão. Será que ainda vai ser técnico do Cruz de Malta? Vontade não lhe falta.
Ah, não será o grande barato desse percurso chamado vida, tentar atravessar a corda bamba entre o sonho e a realidade, ora bêbados de alegria, ora porreados de angústia, mas fazendo com garra, vontade, até mesmo alegria o que não se sonhou, porém a vida nos levou a fazer? Não ficar somente amargurado com o que não se fez, mas passar a sonhar com que ainda se tentará fazer? Devaneios não olham a data de nascimento na carteira de identidade.
Almodóvar e Woody Allen que se cuidem. Em 2007, quem sabe, não sai meu longa com trilha do Aldir e o Urso de Ouro vai enfeitar a minha estante da sala, bem ao lado da minha foto de normalista? Minha roupa na premiação será da Joana, brincos de Carol Pena, sapatos sob medida da loja do Pedrinho. Vou de jatinho particular, pilotado pelo Tuninho. Na entrega, o Marcos canta Linha de Passe e o mundo grita com a boca cheia de feijão:
— Mil, mil, mil é o Brasillllllll!