Eles dobram por ela  

                     Rosa Pena



Evite o aperto de mão de um possível aliado...
Convença as paredes do quarto e durma tranqüilo”


Raul Seixas/ Por Quem Os Sinos Dobram.* 


Sim, este é o momento anual de tentar garantir uma vaga no paraíso.
Sim, esta é a oportunidade de limpar a barra com Ele e tranqüilizar a consciência. Quem sabe assim não se consegue ouvir os sinos de Belém e não um alarme “antialgo” na noite de Natal? Acredito que tenham sido esses motivos, os principais, que levaram nossa turma de natação a escolher uma favela carioca como local para o almoço de final de ano. Sim, ser justo, dividir, fazer doações. Levar raspas e restos dos armários superlotados para os menos favorecidos e assim arrumar espaço para as novidades prêt-à-porter. Matamos logo dois coelhos, quer dizer dois perus numa cajadada ou cachaçada só! Depois a gente almoça feijão com arroz, feito na venda de algum retirante, e juramos pra nós mesmos, pra família, pros amigos mais íntimos, pra torcida do Flamengo, que é melhor do que em qualquer restaurante do mundo. Quem sabe essa atitude não rende até uma ONG? Falta só um nome sugestivo. Já existe ONG dos coelhos e perus? ONG da cajadada? ONG dos matadores de cachorro a grito? Eureka! ONG da ONG.

Subimos degrau por degrau olhando a paisagem que nos dá medo o ano inteiro. De lá é que vem a bala perdida e o temerário pivete-bomba, aquele que mata e morre em nome de qualquer coisa, que nem ele consegue entender os porquês.

Ela estava lá plantando girassóis, não sementes, mas as plantas já bem crescidas, adultas e floridas. Suada, porém sorridente, admirava a carreira já fincada, alguns até começando a murchar, quase feios, se é que é possível flor enfear.
Paramos nossa caminhada e ficamos olhando para os girassóis com a certeza que eles não vingariam por muito tempo.
Ela percebeu nosso jeito incrédulo, totalmente desesperançado e exclamou.
— Estou preparando o caminho para a chegada Dele.
Júlia, mais afoita, falou alto:
— Em uma semana morrem de vez. Não agüentam viver num lugar tão árido.
 — Ela respondeu baixo:
— Quanto tempo demora a beleza de um amor?

Ficamos caladas olhando aquela mulher cravada de rugas e fé. A vaga dela está garantida, não nesta Terra seca, bem mais além do que alcança nossas mentes.
Nosso purgatório não tem sol e não gira. É só uma maratona em busca do poder, ONG dos pretensiosos. Com o domínio vem a gana que cria as bombas e os meninos, vem a grana que se gasta dentro de um shopping cinzento comprando um legítimo Cartier, que marca um falso tempo. Deus nunca precisou saber das horas para dobrar os sinos.

Que dupliquem para ela. Amém.


*” Por Quem os Sinos Dobram - Ernest Hemingway




                            livro
                           UI!
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 13/12/2006
Alterado em 07/12/2015
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