“bateau murcho”
Rosa Pena
Ouviram de longe o apito do bateau – mouche.
- Está lembrado?- disse Laura.
- Como esquecer? -respondeu Augusto
- Nossa lua de mel foi aqui!
- Voltamos para a despedida, falou acendendo um cigarro.
- Vamos antes às verdades?
- É perigoso.
- Não há mais nada a perder.
- O passado não mais me interessa, já fez seus estragos.
- Sim, mas temos que passar a limpo para vivermos em paz.
- Qual é a sua sede pro futuro?
- Diga antes sua fome - rapidamente pegou um guardanapo, abriu a bolsa, retirou um espelho e iniciou limpeza no rosto.
- O que está fazendo?
- Quero estar limpa de toda superficialidade, ser honesta até no rosto.
- Então não vou fumar, nenhum artifício para aplacar os nervos. Pergunta!
- Tem fome de quê?
O bateau -mouche apitou de novo.
-Sabe, o que mais me angústia no momento é não poder recomeçar, tenho fome de uma nova vida, viver meu sonho adolescente, ser escritor, um Hemingway, um Malraux, viver as aventuras deles, ainda quero ser herói, um Stanley no Congo... Ser um homem que não têm medo de morrer, um Guevara. Tenho fome de vingança, de matar, de degolar os carrascos da humanidade, agora que me desnudo, devo confessar, tenho fome de crença, cansei do cinismo, da frieza do pensamento, do questionamento, das não respostas. Quero simplificar, me entregar nos braços Dele, acreditar na vida pós morte.
Ou quero ser bem desonesto? Honestidade só me castigou!
- Fala da boca pra fora! Sempre foi ético demais.
- Ética! Conceito abstrato que muda de acordo com a conveniência, mas nada de filosofar, pé no chão, fome de ser um pianista não virtuoso, daqueles que tocam num bar e ninguém ouve, bebida em cima do piano, cigarro no canto da boca e uma loura vadia ao lado.
Ou quero ser o protagonista, Boggart, Mitchum, sentir o gosto dos aplausos?
- Vaidoso!
- É sua vez! Tem sede de quê? (pegou novamente o cigarro)
- Sabe, como você quero reviver, recomeçar e ter certeza que não conhecerei Augusto algum. Ah! Você me sufocou, me quis só mãe de suas crias, sede de voltar ao estudo interrompido. Sede de usar a mente encarcerada por tantos anos. Merda, merda e merda!
- Nunca usou palavrão! Não lhe cai bem!
- Dane - se! Você e toda a hipocrisia! Tenho sede de ser mulher, não um útero ambulante, fazer sexo por prazer e não por obrigação.
- Mas, eu pensei que...
- O que você faz muito bem é pensar e não entender! Minha sede, ai, minha sede é de conhecer Atenas, Roma, Florença, Barcelona, ser arquiteta, criar monumentos. Quero pisar num palco, ser Sarah Bernard, Isadora Duncan, Fernanda Montenegro, sonhar com a Comédie Française...
- Vaidosa!
O bateau -mouche passou sem apitar.
Tão iguais!Aprenderam a sonhar na mesma escola?
- Futilidade, devia ter vontade de voltar a ensinar.
- Fiz isto a vida inteira, basta! Deixo isso às novas Lauras esperançosas. Você que é aposentado, por que não parte para algo semelhante?
- Trabalhei muito e dei todo conforto a minha família!Está me magoando.
- Foi o que fez comigo por tantos anos, se metendo com vagabundas, pensa que eu não sabia? Toda vez que me jogava na cama e me aparecia com novidades no ato, eu confirmava. Nova bandida no pedaço!
- Mas, minha esposa, minha companheira para sentar-se comigo no natal sempre foi você!
- Quem disse que eu queria ser só madame? Ah! Invejei as putas que tiveram o seu sorriso.
- Fala como um estivador, não lhe conheço mais.
- Que bom, acho que destravei a língua e a alma!
- Afinal porque paramos de nos amar?
- Nos amamos algum dia?
- Não. Fizemos apenas companhia um ao outro.
O bateau -mouche sumiu!
Tão iguais! Aprenderam a se odiar na mesma escola?
Ela passou um batom, levantou - se, pegou a bolsa, o casaco.
- Me dá a passagem, vou direto ao De Gaulle.
O homem, como um sonâmbulo, retirou do bolso um envelope e entregou-lhe. Ela desceu os três degraus e se afastou correndo.
Ele, de repente, acordou de um sono com bodas de prata e gritou:
- Espera! Minha fome sempre foi de Laura!
Ela não escutou, já havia partido em busca de água.
Onde teria uma fonte que jorrasse Augusto?
Tão iguais! Aprenderam a se amar na mesma escola?
*Agradecimento ao Iosif Landau, um dos maiores contistas do Brasil, que dedicou seu tempo e sabedoria à mim.