Cagüete merece cacete

Rosa Pena


Quando a gente faz a primeira comunhão nem sabe direito o que está fazendo. O fato é que em minha época tínhamos que ficar cara a cara com um padre, separados apenas por uma mínima tela num apertado confessionário, ajoelhada, tendo que confessar nossos pecados.
E com nove, dez anos se tem pecados?

Bem, fiz a relação dos meus pecados na véspera da confissão, e não dormi a noite inteira. Afinal, esconder pecados era talvez o maior deles.
Fiz uma retrospectiva de minha “longa” vida de experiências no decorrer de meus nove anos de idade. Teria que narrar meus erros ao representante legítimo de Deus. Por ele seria julgada e dependia de sua absolvição para poder usar aquele vestido branco lindo, participar da festa que haveria no colégio, poder dar santinhos de lembrança, ver as lágrimas de orgulho no rosto de meus pais, enfim, ser considerada uma menina boa pela sociedade. E mais, saberia finalmente o gosto da hóstia e poderia fazer aquele ar contrito de sofredora, sempre achei um show quando via titia fazer. De véu, olhos fechados, ar arrependido, lágrimas furtivas, sofrimento estampado na fisionomia.

Comungar doía muito, pensava eu. Estranhamente a dor passava rápido demais, pois em menos de dez minutos titia já estava de novo com o ar atrevido e pronta para gritar com Celinha, minha prima de seis aninhos, que não havia ajoelhado durante a comunhão.
As moedas pegas escondidas do troco de papai, os sorvetes e as balas antes do almoço, a resposta feia dada à minha irmã, a mentira que contava à vovó seriam pecados graves?

Deveriam render-me a leitura de umas dez ave-marias pelo menos.
Salve-rainhas à parte, o que mais me preocupava era como dizer ao padre que já havia me tocado e sentido prazer. Nem sabia o que era masturbação naquela época. Achava que era algo gostoso e errado. Prazer sempre vem acompanhado de culpa, que droga!
Treinei naquela noite. Treinei muito mesmo. Ensaiei minha performance.
— Padre, passei minhas mãos nas pernas e lá; ou, padre, minhas pernas e lá passaram em minhas mãos?
Bem, na hora da confissão não tive coragem, não contei, apesar da curiosidade aguçada dele. Bem curioso aquele santo padre.
Virei, naquele momento, mais uma das católicas apostólicas romanas, mentirosas.
Provei a hóstia com culpa. Vivi a festa sem entusiasmo, achando que não merecia.

Aquela foi a minha maior penitência. Não ter prazer em fazer comunhão.
Foi a primeira e a última vez que ajoelhei no confessionário do tribunal da inquisição dos abelhudos. Será que deixei de ser cristã, deixei de ser uma pessoa do bem?

Durante minha vida comunguei mil vezes com Deus, sem intermediários.
Deus nunca precisou de “laranjas” para seus negócios. Ele é limpo e transparente.

E, afinal, se ele tudo vê e sabe, não precisa de alcagüete.
Cagüete merece cacete.


PreTextos/ 2004
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 22/06/2005
Alterado em 03/10/2008
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