Meus tempos de criança
Rosa Pena


“Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos dias de criança,
Eu não sei pra que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança...”

Ataulfo Alves


O cursinho de admissão que fazíamos para enfrentar o ginasial nos colégios da rede pública, Instituto de Educação, Pedro II, Colégio de Aplicação, nessa época eram os mais visados. Puxadíssimos.

A aula de história da bela professora Marisa, cabelos longos e negros, estilo Perla (cantora de sucesso na época), dava o maior ibope entre a garotada. Não só pela sua beleza, mas por suas aulas ricas em informações.

Lembro-me, como se hoje fosse, o dia em que ela começou a falar dos piratas. Após explanar o que definia pirataria, começou a nos contar histórias. Sabíamos muito pouco, somente das proezas do Capitão Gancho e olhe lá, então o assunto ficou interessante.

Tínhamos um colega de sala que adorava holofotes nele, acha-se “o poderoso” dentro da nossa galera constituída essencialmente de classe média, pois seu pai tinha um carrão. Bento, em outras aulas, já havia sido parente do Marquês de Pombal por parte de mãe, do Visconde do Rio Branco por parte de pai. Desta vez resolveu que alguns de seus antepassados haviam sido poderosíssimos piratas. Roubou a cena e com uma enorme euforia começou a narrar aventuras incríveis de seus primos em vigésimo grau, cometendo mil maldades, afinal todo flibusteiro tem que ser muito mau segundo o conceito Peter Pan!

A professora tentou, com seu jeito meigo, voltar à pauta da aula, mas Bentinho não permitia e extrapolou geral, persistindo em falar da coragem e audácia dos seus primos caribenhos. Muitos roubos, inúmeros assassinatos. Crueldade exposta como vantagem. Rios de tesouros legados a sua família. Nós, com nove ou dez anos, acreditávamos em quase tudo.
Bobinhos, graças a Deus!

Num certo momento afirmou que corsários não choram jamais, mesmo ficando meses isolados do mundo em alto-mar. Ó dó! Tão cedo e já com o conceito, ou melhor, preconceito contra as lágrimas masculinas. Dona Marisa, tranqüila, aproveitou o gancho (não o capitão) e disse:
— Os piratas, por viajarem muito tempo e conviverem somente entre homens, muitas vezes acabam por praticar a homossexualidade. A sala destacou-se pelo silêncio. Não se ouviram risos, mesmo porque a professora conduziu o assunto com seriedade.

Se fosse hoje teria dito ao Bento com ironia:
— Se piratear já é crime, olha mais um motivo para não fazê-lo.

Acho que não teria dito nada não, pois tenho certeza de que o menino naquele dia aprendeu muito mais do que ele imagina. Aprendeu que basta ser Bento da Silva e que  homem pode chorar o quanto quiser. Chorar até porque não se é mais criança quando ainda se é.



livro: PreTextos
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 26/06/2010
Alterado em 26/06/2010
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