Quando o conheci, eu estava chegando aos quinze anos e ele aos trinta. Ele era um misto de hippie e bad boy.
Eu começava o curso normal no Instituto de Educação, filha caçula de militar, acostumada a acordar ao toque da alvorada (tosse proposital de papai), às cinco da matina, ir para o colégio e voltar direto para casa, estudar à tarde, lanchar na Hora do Brasil e ir dormir.
Ele não estudava, não trabalhava, tinha uma moto, uma tatuagem no braço e parecia não ter casa. Era um transgressor para a época. O tipo de homem que qualquer pai quer ver bem longe da filha.
O primeiro olhar aconteceu no ponto de ônibus em frente à minha escola. Percebi aqueles olhos fixos em mim, percorrendo meu corpo até chegar em minha boca. Ruborizei e tomei o primeiro ônibus que apareceu.
Esse foi o primeiro de uma série de atrasos para o almoço em casa. A partir daí, todos os dias, na saída do colégio, lá estava ele. Sempre encostado na moto, com aquele olhar tão penetrante que eu sentia os botões de minha blusa pressionados a estourar, pela excitação de meus seios.
Um dia, depois de quase um mês dessa paquera, aproximou-se. Não disse o nome. Apenas mandou que eu subisse na garupa da Honda. Balbuciei fracamente que tinha de ir para casa e ele respondeu que me levaria. Subi quietinha e fui sentindo aquele cheiro de homem. Parecia, ou melhor, ele sabia exatamente onde eu morava. Deixou-me na porta.
Desci com um tchau, entrei correndo no prédio, subi ofegante as escadas. Naquele dia, não almocei e gastei toda a água da caixa em um banho infinito.
Durante quatro dias, a cena se repetiu. Subia na moto e íamos em silêncio. Ouvíamos só o ronco do motor e o barulho do vento.
Finalmente, com a proximidade do final de semana, ele perguntou se poderíamos nos encontrar em outro lugar. Disse que sim, sabendo que deveria dizer não.
No sábado, menti descaradamente para meus pais e lá fui eu ver o transgressor. Já me sentia literalmente apaixonada por ele.
Conversamos pouquíssimo e nos beijamos muitíssimo, em uma ruela deserta e escura, próxima à minha casa. Rua que foi testemunha, durante meses, dos carinhos, das juras, das entregas, do tesão alucinado, do amor que floresceu.
Eu, no fundo, sempre achei que dificilmente daria certo.
Papai, quando soube, apostou todas as suas fichas no fracasso dessa relação. Mas sempre fui de me jogar por inteira em tudo. Ainda mais quando tem “senões”.
Hoje, a ruela é iluminada, congestionada. O transgressor virou ditador, aboliu do seu dicionário a palavra amor.
Quanto a não dar certo, tenho minhas dúvidas, pois foram mais de vinte anos de paixão acesa. Talvez em um só coração. O meu.
Acredito que o defeito esteja em mim. Nessa vontade louca de ser eternamente uma normalista enamorada. De não aceitar com tranqüilidade a perda do direito a um beijo molhado a cada boa-noite. De não conseguir domar meus seios, que teimam em saltar do sutiã e estourar os botões de minha blusa, só de sonhar com olhares de transgressão.
janeiro de 2002
livro/ PreTextos/ Rosa Pena