Liza e Augusto casaram-se cedo. Ambos inexperientes, ambos quase adolescentes.
Rita nasceu após dez meses deste casamento. Ricardo, após vinte e quatro meses.
As crianças-pais tiveram dificuldades de criarem as crianças-filhos. E tamanho foi o medo de erros, que esqueceram do casal que existia. Ritinha reinava na casa e na vida deles. Um reino absolutista, onde ela exercia sua tirania. Até o consorte Ricardinho obedecia, mas às vezes, com um pouco de sorte, se dava bem. A menina era a preferida de forma descarada. O casal abriu mão de qualquer ilusão em função da prole.
Compraram um apê próprio de ótimo tamanho, um quarto para cada filho. Televisões, vídeos, bicicletas, patins, colégios particulares e até celulares individuais. O peito do frango era da Rita, a coxa do Ricardo, e Augusto que comesse as asas. Liza? Nem fazia questão de comer, considerava que a grande verdade da vida é “ser mãe é padecer no paraíso”.
Augusto perdeu a identidade e por pouco não perdeu totalmente a virilidade. Liza deixou de ser mulher, virou mãe em horário integral e passou a chamar o marido de “paizão”. E ele? Ora bolas, era de fato um grande pai, tipo pai-de-todos, fura-bolo, cata-piolho. A sexualidade do casal ficou bloqueada. Púberes reprimidos. Não se deseja pai, não se deseja mãe. Fica uma sensação danada de incesto. Ama-se e até abusa-se da individualidade deles, visto que pais sempre perdoam. C'est la vie.
E ele foi se acostumando a fazer rã para a dieta de crescimento da filha e a engolir sapos.
Em 2000, sua filha completou quinze anos. Dançou com ela a valsa e foi apresentado ao namorado dela. Ele, paizão aos trinta e seis anos; o namorado paixão, aos vinte e seis. Presenciou o primeiro beijo de língua de sua filha. Lembrou-se vagamente do dele há long time, e isto desencadeou um miniflashback em sua cabeça. Aos vinte e seis estava às voltas com chupeta, e preocupado em fazer caretas para a filha sorrir, correr atrás de dinheiro para manter tudo sob controle. Ah! A viagem sonhada à Itália ficou esquecida. Sentiu um maldito vazio, total melancolia. Ficou sem graça perante Deus, afinal tinha saúde, já que não fumava, não bebia, não traía, vivia para a família, para o trabalho. Tinha quase tudo, reclamar do quê?
(Do quase. Este quase na vida é foda!)
— Paizão, tá na hora do champanhe, das fotos e do vídeo. — Ouviu ao longe a voz da mamãe Liza e dos rebentos.
Sorria, você está sendo filmado.
A foto ficou linda, tanto que enfeita o jazigo junto com a data do infarto.
A causa do infarto? Estresse.
De quê?
Do quase.
“Não fomos construídos para ‘ser feliz’, mas para nos reproduzir.”
Helen Fisher
2004
LIVRO PreTextos/rosapena
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 01/06/2005
Alterado em 09/08/2014