Cultíssimos
Rosa Pena
De repente, percebo o excesso de cuidados. Distância calculada, fala pausada, sorriso forçado. Ficamos educados demais. Aos amantes tudo é permitido, gritos, palavrões, aos amigos quase tudo é permitido, gargalhadas, resmungos desaforados, aos ex-sentimentos nada tem permissão, apenas a fria polidez de um como vai, o tempo está chuvoso, o Brasil perdeu a Copa na estupidez. Quem nos vê agora, não imagina quantos segredos compartilhamos, quantas intimidades invadimos. Nossos olhos não se fitam, pois neles poderíamos ver a fita de algum lugar no passado, onde sabíamos exatamente por onde andavam nossos corações, o quanto de manteiga se colocava em cada pão, a exata quantidade do açúcar, a mineral com gás, o molho da salada, a ira com a tábua molhada, a risada safada fora de hora, a calcinha preferida dando o recado "te quero já", a televisão ligada para o nada, a lua e o sol viciados em voyeurismo.
Procuramos olhar para algum muro de Berlim, repetidas vezes, para o relógio simulando urgência. Falamos frivolidades para não ter que encarar que um dia fomos peixes do mesmo aquário e, sem nem entender ao certo as razões para tantas mágoas, virar sardinhas entre dúzias na xepa da feira. Eu nem ligava pros seus ciúmes de meus cabelos cor-de-acaju, então, por que passo histericamente minhas mãos neles, ao ver seu olhar indiferente para esse meu novo vermelho? Civilizadamente, sim somos civilizados e cultos, cultíssimos, absurdamente cultos, para criar barracos, nem sequer somos gregos, para quebrar copos e pratos, apenas murmuramos com ar blasé (cultos não berram) que qualquer hora a gente se vê sem tanta pressa, sabendo que cada vez que nos revemos por conta do acaso e forçando tanto descaso, estamos mais longe do que fomos. Um dia, passaremos sem nos reconhecer e não lembraremos de como era a soma eu mais você. Só falta agora dizer: "Muito prazer (ao nos conhecer!?) Já nos vimos antes? Aprecia também Monet? Ópera? Vinho?" (somos estupidamente cultos).
Damos um tchau ligeiro e seguimos para trópicos opostos, quando nós, há bem pouco tempo, dançávamos colados na linha do Equador. Olho disfarçadamente para trás, mas só vejo ao longe um vulto. Passo a acreditar nesse momento em assombração. O fantasma do que fomos acabou de virar a esquina. Olho meu rosto no espelho de um carro mais estático do que eu. Jurava que tinha posto blush adoidado, mas acho que me esqueci, na pressa de vir à exposição: sempre gostamos das bailarinas de Degas.
Há quanto tempo não faz sol por aqui? É por isso que empalideci ou morri com elas, presa em alguma tela, sem ter você pra fazer pas-des-deux?
LIVRO UI!
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 13/07/2006
Alterado em 26/10/2014