Eu... Eu hem!
                                   Rosa Pena




Eu que já não sei mais do uísque batizado com guaraná no fim de noite num bar do Leblon, meu Deus do céu que tempo bom, não sei mais das coisas bem simples, eu que já esqueci os olhos espantados dos turistas com o jogo de dominó dos aposentados no meio da rua numa terça tupiniquim, enquanto em Wall Street os yuppies gritam que a bolsa asiática despencou, eu que já deixei de merecer o silêncio das borboletas por conta da histeria urbana, eu que já perdi o prazer das janelas abertas para receber a visita do ar fresco, pois junto vem a maldita bala perdida, eu que já desaprendi a caminhar devagar, tenho pressa nem sei mais de quê e pavor do assalto nem sei mais de onde, eu que já não sei mais o que me vai por dentro a não ser uma ansiedade ansiosíssima cheia de vícios de linguagem. Eu... Eu hem!

Tento refazer em mim o desfeito, emendar meus rasgos com as raspas dos restos de imaginação, inventar outra pele para cobrir a que ficou nua de magia. Vida em ampulheta, a areia já desceu mais da metade e se antes descia lenta hoje parece que tem pressa em escorrer e findar de uma vez sua função.

Eu que não sei e nem quero saber nada dos mistérios insondáveis, mas acredito num extinguir-se sem passagem pelo inferno, céu ou purgatório: fim é c’est fini, encerrou, se fez está feito, se não fez perdeu a vez.

Pássaro ou voa ou mora em gaiola. Engaiolado é bicho sem asas, olhos enquadrados, passarinho sem céu, um canário que, apesar de tudo, não desiste de querer ser de raça. Belga, quem sabe. Canta e acha que é feliz sem nunca ter dado uma cagadinha na cabeça de quem o engaiolou. Só voa quando morre, isso se acreditar em paraíso com maçãs vermelhinhas. Mosca vive menos, mas voa-voa-voa feliz até pousar em algum pão-doce.

Desejo, como desejo, o tempo restante da areia para me refazer cheia raça sem ser belga, adoro ser tropical, andorinha-do-mar, encontrar-me em alguma trama nova da vida, antiga em devaneios, meu rosto tecido no índigo desbotado de tanto querer bem. Eu insisto, insisto e insisto em me reeleger uma sonhadora.

Que seja das grandes burradas, da comida queimada, das olheiras enigmáticas, da artrite, da mosca que pousou na sua sopa, do sabiá-laranjeira, do pleonasmo, do sequestro relâmpago, do amar sem ser amada, do sonhado e eternizado menino do rio. Coração de eterno flerte... Adoro ver-te!

Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 01/03/2009
Alterado em 08/01/2010
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