Do lado da academia onde nado tem uma antiga padaria que acabou virando um bar. O Pão de Bigode. O dono descobriu, há alguns anos, que cerveja dá mais grana. Acabou pondo mesinhas do lado de fora, e ali reúnem-se mestrados em sua hora de almoço, aposentados do INSS, casados fujões, pinguços de plantão. Jogam porrinha (basquete-de-bolso), dama, lêem jornal, saboreando uma cerva.
Para chegar à academia, forçosamente tenho que estacionar o carro antes da padaria, pois depois é proibido. Eu e todas as mulheres, portanto, passamos a ser o alvo das brincadeiras diárias dos freqüentadores. Na aula, costumávamos reclamar dos modos destes homens. Particularmente um, que parecia ser o mais atirado; falava alto, algumas e muitas abobrinhas.
Sabíamos que o nome dele era Ernesto. A idade, indefinida. Era daquelas pessoas que a vida castigou tanto, que não conseguimos definir a idade da certidão. Tem a idade da vida vivida.
A galera sempre perguntava:
— E aí, Ernesto, tua mulher deixou tu entrar ontem bêbado?
Sorria e revidava.
— Num tava bêbado, tava feliz. Vocês não sabem o que é isso. Além do mais, não sou viciado, pois só bebo das dez da matina até às vinte e duas.
Parava de conversar quando eu começava a passar, e falava alto:
— A professora ontem foi à praia, tá cor-de-canela. Vem pra minha canjica, doçura!
Eu passava séria, com ar de ofendida. E questionava-me como ele sabia a minha profissão. A minha e de amigas da academia. Todos os dias, durante dois anos, a cena se repetia três vezes na semana.
O bando de marmanjos sacaneando ele.
— Ernesto, se toca e para de mexer com as mulheres, tu não funciona nem com Viagra!
Ele respondia com seus provérbios de beira de calçada.
— Enquanto tiver língua e dedo, de mulher não tenho medo... E aí, professora, clareou o cabelo?
Eu ficava doida, pois o danado percebeu minhas luzes, e lá em casa ninguém viu.
Ouvi um dia chamarem ele de suburbano e dizerem que saía às sete da manhã para chegar às dez no Pão de Bigode. Tinha sido obrigado a mudar de bairro, dinheiro curto. Mas estava arraigado aqui.
Aos poucos, por conversas altas e paralelas, eu ficava sabendo da vida dele e ele sabia da minha, pelo que víamos um do outro e pela Dilcilene, faxineira da academia, chegada a uma fofoca.
Descobri que ele era um homem-povo, casado há 40 anos, oito filhos, aposentado por insuficiência cardíaca. Este anônimo suburbano, ardoroso fã do sexo oposto, sequer imaginava o bem que fazia para o nosso ego. Dizia o que queríamos ouvir de nossos amados. Dizia de forma aberta, simplória, descaradamente deliciosa.
Nunca recebeu um sorriso nosso. Um sorriso meu! Na última sexta, falou de minhas argolas novas e reclamou que eu estava de cabelos presos. Meu sorriso foi interior.
Ontem, passei por lá. Reinava um silêncio absoluto. Não entendi, e depois minhas colegas foram chegando e comentando sobre este maldito silêncio. Cadê a Dilcilene para dar o furo de reportagem??? Tinha saído.
Renata, curiosa como ela só, arrumou o pretexto de comprar uma diet-coke, só para bisbilhotar. Voltou pálida. Havia um comunicado de falecimento do Ernesto na parede.
Comecei a chorar, silenciosamente e contidamente. Aos poucos percebi que todas choravam. Nada dissemos. Nada a declarar. Cada uma sabia o que este anônimo representava para nós. Com ele, foi muito da alegria do cotidiano... Foi mais, bem mais. Parte com Ernesto um pouco do folclore carioca, uma maneira alegre e despretensiosa de viver. Parte ele sem saber como era importante o seu viver.