Quando eu era criança, conheci Seu Bento que, com o tempo, descobri ser daltônico. Foi difícil entender como alguém não via o mundo com as mesmas tonalidades de cores, pois sempre achei que o azul nascia exatamente igual para todos. A partir desse fato, comecei a questionar se as outras pessoas que não sofriam de daltonismo enxergavam as cores da mesma forma. Perguntei ao meu pai e ele disse que mais tarde a vida me daria a resposta não científica para isso. Certa vez, estava na praia com meu sobrinho, quatro anos na época, que já conhecia quase todas as cores e inúmeras formas. Fazíamos castelos na areia, para proteger os tatuís dos surfistas. Ipanema estava com uma enorme mancha negra de óleo e todos comentavam o fato. Ele começou a chorar, pois não conseguia ver a tal negritude, por mais que a mãe, já irritadíssima, lhe mostrasse. Ela demonstrou preocupação com a aprendizagem do filho, aliás, nossos filhos já têm que nascer doutores... Faz favor! Depois de um certo tempo, não resistindo ao choro dele, peguei-o no colo e perguntei o que ele via de diferente no mar, que não fosse o azul. Respondeu-me que via um golfinho imenso, dourado. Reparei naquele momento que o sol batia na mancha e as ondas davam-lhe forma de um ser marítimo. Pintura abstrata na visão de uma criança que ainda enxerga o mundo bem colorido. E nós vivemos insistindo em precipitar o concreto. Acho que me fiz poeta naquele momento, para me refazer criança, com direito de colocar cor-de-groselha nos peixes que nadam na terra prateada, que nasceu no meio do meu quarto. Papai, antes mesmo de ficar cego, adorava sentir o calor turquesa do sol. Não, não era alienado, nem eu sou. Meu sobrinho? Formou-se em jornalismo sem manchas negras no currículo, mas optou por ser um escritor de poemas da cor-dos-olhos-de-sua-amada. Mel para o mundo, verdes para ele.
LIVRO UI!
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 28/03/2006
Alterado em 05/12/2009