Agora faz!!!

                   Rosa Pena

— Agora faz outra!

Ouço a voz da minha filha, falando com meu sobrinho-neto de dois aninhos e levanto os olhos da revista. Constato que Felipe havia acabado de matar uma joaninha.
Sorrio para Carol e mando um beijo para o céu, pois afinal papai está lá, assistindo a tudo de camarote.

Volta à minha memória a minha infância. Não sei exatamente com que idade papai falou pela primeira vez: — Agora faz outro (a)! Ah, mas lembro com exatidão quando me explicou o porquê da frase.
Estava com sete anos e brincava na varanda de casa. Uma carreira de formigas formou-se em volta de um papel de bala que deixei ali. Peguei minha sandália e matei as formigas com vontade. Papai que assistia disse:
— Minha filha, creio que ainda não entendeu quando  digo “agora faz outra”. Destruir a obra alheia é fácil, construir outra igual é impossível. Você pode conseguir algo similar ao original, mas nunca será idêntica, ainda mais obras da natureza, que apenas Ele conseguiu realizar. Quando você pisa numa formiga, você destrói parte da obra Dele, e quando lhe mando fazer outra é para mostrar tua impotência diante Dele. Rios e mares poluídos, florestas devastadas. Ah! Que dó desse mundo descompassado. Isto minha Rosa, não se aplica apenas a obras divinas. Busque ver a parte bela de cada coisa e repare que não foi feita à toa. E mais, olhe com atenção, pois tudo muda, passa rápido e não tem volta.

A partir desta explicação, virei naturalmente uma defensora do meio ambiente. No decorrer da vida incorporei este pensamento à minha filosofia de vida.Não sei se sou extremamente condescendente com a obra alheia, mas quando leio um poema, olho um quadro, ouço uma música, vejo um filme, busco sentir o momento de criação do autor. Procuro um pouco de sua alma, na certeza de que não fez em vão.
Sempre que vejo alguém desfazer sumariamente de uma obra, penso na pisada da formiga. A pergunta martela em meus ouvidos... Será que este crítico feroz consegue fazer igual?

Certamente que não. Pode fazer até melhor, dentro da concepção dele, mas igual nunca.
Apenas matou o momento de brilho do criador, momento que não volta.
Minha filha tenta explicar ao Felipe. Ele ainda não entende, ainda pisará em muitas formigas, mas ela já plantou a semente.

Olho com orgulho para ela e constato que a minha germinou. Está linda, coberta de botões.
Tenho certeza de que florescerá.
Levanto e vou buscar o cd do Lulu Santos. Sinto necessidade de ouvir com papai “Como uma onda no mar”.


2003

LIVRO PreTextos/rosapena


 
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 24/04/2005
Alterado em 07/08/2014
Copyright © 2005. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.





Site do Escritor criado por Recanto das Letras
art by kate weiss design