Celebração da fé
Rosa Pena
A mama direita doía muito. Passou novamente a mão nela e sentiu o nódulo quase saltando. Vestiu o sutiã na tentativa de escondê-lo de si própria. A chuva caía forte como se chorasse pelos bicos rosados que sempre passearam livres pelo espelho.
Olhou o relógio e a rua. Um casal de namorados passeava sem medo algum de pegar um resfriado. Que cantem felizes como o Gene Kelly e a Jean Hagen; pensou.
Os passarinhos apanhados de surpresa tentavam encontrar abrigo para proteger suas asas. Que encontrem árvores frondosas; suspirou.
Começou a tentar orar alguma prece, mas sua mente resolveu não se lembrar nem da Ave-maria. Quem mandou parar de ir à igreja? Quem mandou? Quem?
Rezar, sim rezar muito para escapar do desconsolo vazio que atravessa os corpos em desarmonia. Ao longe avistou um cartaz com a propaganda do DVD "Down to Earth".
Será que o céu realmente pode esperar?
Abriu as janelas para ver melhor a chuva e o ar liberou o cheiro de um café recém-coado em alguma casa com odor de família reunida. Vestiu seu vestido mais sem graça, abriu a porta pensando no diagnóstico que estava por vir, na sua total ignorância em preces. Beija-flores, sabiás, escolhem o seu cantinho em busca de calor. Tomara que nenhum deles caía em arapucas desumanas. Livres e cantando Singin' in the Rain. O café voltou para suas narinas e ela lembrou do bolo de laranja que sua mãe fazia. Sempre foi seu abrigo, ainda mais hoje com esse frio carioca, apesar dos teimosos termômetros marcarem 40 graus.
Atravessou a rua com tanta pressa que esbarrou de leve numa mulher grávida. Pediu desculpas e desejou que nascesse uma linda criança. Entrou no táxi com uma ansiedade impiedosa por não saber rezar. Olhou o taxista e notou um ferimento ligeiro em seu rosto, provavelmente na pressa em se barbear. Pegou seu pequeno lenço e ofereceu-lhe. Ele agradeceu com um aceno feliz. Saltou na porta da clínica e viu uma criança amuada. Sorriu para ela imitando seu bico. Balançou seu chaveiro com um ursinho pendurado. A menininha agarrou satisfeita. Tirou as chaves e deixou-a ficar com o encanto.
Foi para o elevador aflitíssima com a oração que não fez. A súplica perdida na memória exatamente hoje, sim, logo hoje não lhe veio qualquer palavra santa do dicionário, nenhuma chance de mostrar que seu coração não é totalmente oco.
O ascensorista perguntou o andar.
—Vigésimo segundo.
—Vai para o céu!
—Não... Vou para inferno.
—Por que?
—Não sei mais rezar.
—Odeia seu próximo, humilha crianças, mata formigas, aprisiona colibris?
—Lógico que não! Que absurdo!
—Então...
Entrou na sala convicta que a cirurgia seria um sucesso. Acariciou seu seio, fez as pazes com ele. O céu? Definitivamente terá que esperar, já a chuva não. Cantar ao sol não tem lá muita graça. “Chove chuva, chove sem parar, pois eu vou fazer uma prece... Pra Deus, Nosso Senhor”, pelos beija-flores, pelas grávidas, pelos enamorados, pelos trabalhadores, pelas crianças, pelo bolo nosso de cada dia. Salve mamãe. Salve Maria.
midi:Singin' in the Rain
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