22/07/2005 09h09
Palmas para o Rei!
Rosa Pena
Por estes dias resolvi dar uma voltinha no passado, e subi até o Alto da Boa Vista, bairro do Rio de Janeiro, lugar onde cresci. Em cada curva uma saudade. A do "S" sempre foi extremamente perigosa, por ser tão sinuosa como seu nome. Foi nela que levei meu primeiro tombo de moto.Lembro-me que quem me socorreu foi Seu Tadeu, um negro que já tinha cabelo branco, e olha que quando negro embranquece o cabelo a idade já vai longe. Ele tinha sido na minha primeira infância um personagem que dava medo. Inventou-se na rua que ele era o fantasma do Zumbi, que havia voltado pra se vingar da escravidão.
No início da adolescência descobri que ele era apenas uma pessoa diferente na maneira de ver a vida. Não era indolente, pelo contrário, era muito trabalhador, porém não tinha pressa alguma, fato que sempre irritou o homem moderno. Correr significa sucesso! Tadeu vivia de mansinho como ele mesmo definia. Pintor de paredes, pintava os sete, os oito, o infinito. Não dispensava elogios para as moças que passassem, um tchau pras crianças, uma ajudada nas sacolas das senhoras, uma fé no bicho, uma cachaça antes de sumir na noite. Estranhamente dava tempo de fazer tudo que os maratonistas contemporâneos não conseguem. Tinha conceitos próprios formados na UV. Universidade da Vida. Não acreditava muito que o homem houvesse pisado na lua, não usava relógio, marcava o tempo pelo sol, depois só conferia com algum passante, tinha uma erva medicinal para cada doença, sabia se ia chover pela dor na perna, pelo comportamento dos animais, não brigava jamais, vivia sorrindo, por vezes até chorava, mas impassível jamais. Talvez sejam esses os motivos de muitos acharem que ele era de outro mundo. Calma, transparência, sentimentos claros e gentileza, já morreram. São fantasmas do passado. Comecei a conviver com ele bem antes de "virar vaca" com a Honda. Nossa amizade começou quando ele foi pintar minha casa, cinco anos antes da maldita derrapada. Chegava em minha casa bem cedinho com um sorriso imenso no rosto, coisa que eu achava impossível de se ter quando se acorda. Eu sempre tava correndo pra ir pra escola, tomando uma vitamina já na porta de saída, com muita raiva de não poder ficar dormindo. Ele ria da minha pressa. Quando eu chegava pro almoço ele já tinha almoçado, e estava dando uma descansada, limpando os pincéis. Mamãe dizia da cozinha pra ele tomar leite, evitava intoxicação com a tinta. Ele revidava que depois tomava uma cachaça, e matava tudo. Eu tinha a urgência dos jovens, não prestava atenção nele, fora que aos onze anos, a gente tem crises de mau humor por estarmos vivos com saúde, mutismos pra criar climão, irritação porque fez sol, ódio porque choveu ou something like this. Um dia perdi um anel de ouro que havia sido de minha avó, que apanhei "emprestado" de minha mãe. Ele me viu chorando pelos cantos, perguntou-me o motivo, e eu contei. Acho que sempre soube que ele era um amigo confiável. Comprou minha causa e me ajudou a achar, sem contar nada pra mamãe. Viramos cúmplices. Amigos da mesmíssima idade nas traquinagens. Passamos a partir dali a conversar muito, e descobri que ele era ótimo em conta de multiplicação, grande amigo do jornaleiro que arrumava a figurinha mais difícil do álbum, e de papo em papo, hoje sei que ele aproveitava pra dizer da besteira que era a pressa em viver, da falta de um sorriso no rosto, do sacrilégio de se ter o dom da palavra, e não usá-la para falar que fosse, que o melhor pode ser o silêncio. Aos poucos sei que fui ficando mais calma, mais alegre, mais falante com o mundo, e mais amiga do rei dos Palmares. Ele ensinou-me que sempre há tempo para dizer um oi para os conhecidos, sorrir pra um amigo. Que ninguém tem o direito de dispor do seu humor para ser legal ou não com seu semelhante. Será que os maus humorados teriam cura com meu amigo? Talvez sim ou talvez eu tenha nascido com o riso solto como meu pai sempre afirmou. Adoro rir com a vida e da vida. É mais rápido que a briga.
Tadeu já se foi placidamente desta vida há um tempão, e afirmava que não tinha medo da morte, pois quando ela chegasse apressada, ia quebrar a cara ao vê-lo sentado esperando-a com calma, e com um sorriso de deboche. Não sei se estava com o tal sorriso pra desdita, pois morreu dormindo, mas que foi enterrado com uma cara bem safada, lá isso foi. Na época de sua morte achei que tinha perdido apenas um amigo ótimo de prosa, de muitas histórias, e de eterno bom humor. Agora descubro que o que eu perdi foi mais. Perdi um bocado da dose de tranqüilidade que ele me transmitia, o ar sereno para falar de coisas complicadas, de saber que se um problema não tem solução deixou de ser charada (deixa quieto de lado), de não ter medo da morte, de driblar a falta de sorte. Hoje meus dias se tornaram mais curtos, pois ele levou consigo o segredo da multiplicação do tempo. Ainda bem que deixou as porções mágicas do sorriso, que me leva a ter disposição de encarar a vida, mesmo quando ela teima em brigar comigo.
E por falar nisso...
-Bom Dia amigo! Tudo bem contigo?
midi/ cabelos brancos
Publicado por Rosa Pena em 22/07/2005 às 09h09