Pensando morreu um burro?

Rosa Pena


Gabriel que não é o pensador, mas que pensa muito mais que o seu xará, vai fazer sessenta e cinco anos semana que vem. Cai na quarta-feira de cinzas. Como ele já anda na fossa, achou significativa demais esta coincidência. Final de festa. Cinzas, luto, aposentadoria da vida, fim de seus ideais.

Avisou a todos na faculdade que agora entrou de vez na terceira idade e vai fazer questão absoluta de entrar pela porta da frente do ônibus, pagar meia-entrada em espetáculos, tomar anualmente a vacina gratuita para gripe, fazer questão de sentar nos bancos amarelos do metrô feitos para idosos, pagar um real por remédios e principalmente falar o que lhe vier na telha. São as “vantagens espetaculares dos idosos”, que o governo garantiu aos nossos velhos, afirma ele. Já que será considerado um, para o mercado de trabalho, para prestar serviços, para concursos, para viver tórridos amores, vai deitar e rolar nessa de velho.

Gabriel é professor de história. Inteligente, vivido, sofrido e automaticamente um contestador por excelência.
Viramos amigos na época das diretas já. Pintamos a cara juntos. Fizemos, portanto, papel de palhaços lado a lado. Isso nos uniu.

Até então, ele me considerava uma garota sonhadora e tinha mania de me tratar com aquela condescendência de quem pensa: “Algum dia, você vai saber o que é a vida.”
Gabriel é um estudioso do Brasil, portanto ele é um estudioso de si próprio, visto que a história dele é idêntica a do Brasil.
Nasceu em berço esplêndido, filho de pais ricos com idade avançada, que tiveram dificuldade em administrar sua infância. Orgulhosos da beleza do infante e certos de que o potencial do menino era evidente, como boa metrópole que se preze, achavam que isto era inesgotável. Aos dezessete anos, Gabriel quis parar de estudar e deu seu grito de liberdade às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, depois de um porre monumental.
Foi morar com um tio aparentemente fabuloso, bonzinho, que resolveu administrar o sobrinho com a visível intenção de colher os dividendos que viriam dali. Afinal, Gabriel era jovem, rico e herdeiro. O nome do tio não era Sam, mas bem que podia ser.

Bem, titio dava tudo a ele: som, carro, viagens, mas exigia total obediência.
Meu amigo acostumou-se a isso. Achava cômodo e fácil.
Quando conheceu Inês, ativista da esquerda, foi um baque para o seu tutor.
E começou o macarthismo cerrado contra a comunista comedora de criancinhas. Mas Gabriel, apaixonado por ela, ignorou as proibições e virou um misto de hippie com Che Guevara.
Resolveu fazer faculdade, começou a ler Darci Ribeiro, assinar o jornal Pasquim, ser fã do Henfil, ir ao Beco das Garrafas, apreciar Glauber Rocha, freqüentar o Cine Paissandu e viver intensamente os anos rebeldes.
O amor entre eles acabou, Inês se engajou em movimentos esquerdistas e sumiu da vida dele, mas ficou plantada a semente de um revolucionário em sua alma.

Nunca chegou a ser preso, mas tem idolatria pelos anistiados verdadeiros, pois atualmente tem um monte de gente que diz que foi, sem nunca ter sido nada. É moda, pega bem.
Gabriel era oposição a tudo que acontecia. Oposição alfabetizada, motorizada, com casa própria, já que realmente não é necessário ser sem-teto e com fome para se ter consciência da merda reinante.
Casou-se tardiamente com Izabel, depois de procurar outra Inês durante vinte anos. Casou por tesão.
Izabel era acomodada, moderada, gostava do tio Sam (de ambos), apreciava segurança, fazia questão de viajar para a Nova Iorque e adorava os musicais da Broadway.

Gabriel separou-se dela, depois de oito anos de casamento. A vida estava um saco, uma mesmice. O tesão já era. E Izabel representava a situação.
Há dois anos conheceu Carmem, uma sem-terra, sem lenço, sem documento.
Carmem era o sinônimo da oposição que sempre sonhou. Juntou-se com ela. Elegeu-a presidente de sua vida. Mas, depois que assumiu o poder, Carmem mudou. Exigiu um apê de frente para o mar, roupas caras e uma viagem a Paris. O relacionamento rapidamente foi para o brejo. Desilusão total.

Ontem presenteei meu amigo Brasil, ops, meu amigo Gabriel, com o livro da Marina Colasanti “E por falar em amor”.
Tem um trecho que merece ser lido e relido:
“No início, a relação é sempre perfeita e ascendente, já que cada dia lhe acrescentamos mais brilho, lantejoulas e panos da fantasia de luxo... Mas, à medida que a relação progride e que forçosamente o amado não cumpre todas as metas impossíveis que havíamos estabelecido para ele, começamos a retirar os bordados.”

É, meu amigo, não é pela idade que teu niver cai na quarta-feira de cinzas. É a constatação de que a situação está para lá de cinza, está preta mesmo. Vivemos retirando os paetês.
Neste mundo nascemos nus, nos fantasiamos e morremos pelados.

Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 01/12/2004
Alterado em 31/10/2008
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