Find myself
                                         (Achar-se)

                                      Rosa Pena 




Resolvi ir a Friburgo. Isolar-me por oito dias.
Ivan, meu primo, avisou-me que a casa de lá ainda estava a esmo, sem vizinhos e sem conforto. Isso me deu mais tesão de ir.
Sempre nos feriados vou para o litoral e volto tostada do sol, alegrinha, alheia a tudo, adiando minhas realidades. Desta vez, no entanto, estou querendo achar-me. 

Preparo minha mala displicente, colocando algumas malhas e moletons. Não levo maquiagem, nem secador de cabelos.
Faço uma sacola básica de alimentos, com poucas massas congeladas, café, umas latinhas de refrigerante e maçãs.
Capricho na bolsa de cds. Todos do Eric Clapton, e mais alguns de bossa nova. Comprei a trilha sonora de Mulheres Apaixonadas, vou ouvir no caminho. 

Livros, apenas dois: “O Canto da Sereia”, do Nelson Motta (não consigo acabar de ler) e “O Clube dos Anjos”, do Veríssimo.
Poucos maços de cigarro, pois vou tentar parar de fumar, pela vigésima vez.
Para fazer contato com a civilização, levo egoisticamente meu celular desligado.
Pego a estrada quarta-feira bem cedinho, lembrando-me das paradas estratégicas que sempre fazia na adolescência. Calculo chegar no máximo às dez horas.
A estrada mudou, alargou e o barzinho do Suíço acabou.
Acho um imenso McDonald’s e, no lugar do meu chocolate quente, como um “McLanche” felicíssimo, ele; eu, irritadíssima! 

Chego a Friburgo e vejo o movimento intenso. Fico um pouco alarmada.
A certeza de que verei a alameda de eucaliptos acalma-me.
Acho a alameda, mas não é de eucaliptos. Então, gravei na memória algo que não existe.
Chego a casa. Realmente Ivan foi condescendente chamando-a de sem conforto. A casa está despencando, mais do que eu.
Entro e abro tudo. O cheiro de mofo é forte.
De mofo ou de saudade? 

Tiro travesseiros e mantas do armário. Verifico as luzes, ligo a geladeira.
Estou instalada fisicamente. Tenho oito dias para reinstalar minh’alma, que anda perdida, vagando, sonhando com um amor impossível.
Mas isso não magoa, não! Este amor é delicioso!
Minh'alma confessou-me que Deus não comete pecados, mas comete excessos. Quando ele criou meu amado, para mim predestinado, excedeu-se no carinho. 

O que realmente entristece é constatar injustiças expressas, que estão maltratando meu corpo, levando-o a ter enxaquecas, insônias, cansaço e ausência de versos.
São tantas gerais ocorrendo no mundo! São algumas específicas e direcionadas ao meu ser e meu viver, que parecem ter o único propósito de matar a poeta que existe dentro de mim.
Daí meu corpo ter resolvido que nestes dias de clausura vai novamente exercer o domínio de minha vida. Vai resgatar minh'alma.
Droga, estou chorando. Meu nariz entupiu. Trouxe ou não o bendito Aturgyl? 

Clapton, pare com a melancolia deste blue!
Não bebo bebidas alcoólicas, mas vou tomar aquele vinho que está na prateleira. Todo empoeirado como minha vida. O rótulo amarelado como minhas lembranças da infância. 

Ele certamente está ali exposto há anos, esperando um olhar mais atento.
Não é um vinho de grife, que delicioso fica envelhecido. É um vinho comum e velho. Nunca deve ter desfilado em altas rodas.
Está ali, parado, acompanhado por um Papai Noel desbotado e encardido. Ambos devem ter composto uma cesta natalina, talvez o único momento de glória de suas vidas.
Mas, hoje, foi visto e de alguma forma será prestigiado. Não deixa de ser um alento. 

Abro e tomo um gole. Sobe um calor gostoso.
Que vontade de ver o tamanho da lua.
A lua está menina, crescente como eu.
Acho que ainda não mataram a poeta.

abril de 2003

inspiração/Find myself- Eric Clapton

livro PreTextos
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 17/07/2005
Alterado em 03/10/2008
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