Cabeção

                                   Rosa Pena


— Melhore teus textos. Escreva sempre na segunda pessoa.
— Em verso eu escrevo por achar que fica mais lírico, mas em prosa não consigo. Eu sou carioca. Escrevo como falo e a segunda pessoa não rola por aqui.
— Queres ser uma grande escritora? Então precisas de mais discernimento. Mais polidez, mais cultura.
— Ô cabeção, tá ruim pra mim. Se eu fosse da novela da globo, Celebridade, moraria no Andaraí, no “Andara”. Nada contra o intelectualismo, sequer levantando bandeira de simplicidade. Apenas permitindo-me ser “eu”, passível de acertos e erros.
— Agora virou moda ser simples, ser povo, negar a arte.
— Grande cabeça, acho que pode e deve existir diálogo e aprendizagem entre as duas esferas. Ouço sempre e aprendo muito com tudo. Nunca negarei um Mozart, jamais blasfemarei contra o Orson Welles e considero os filósofos uma tremenda referência. Uma fonte do saber.
— Modismo não trabalhar com o intelecto?
— Não, não é modismo. É simplesmente descobrir que eu posso e tenho o direito de usar minha inteligência para qualquer coisa, inclusive para dizer que vejo TV.
— És o perfil da anticabeça. Vives da felicidade simplificadora. Engoles qualquer coisa.
— Engulo e vomito na hora certa. Costumo vomitar sofismas ambulantes.
— Então consideras que a intelectualidade não contribui para o aprimoramento da sociedade?
— Ô média cabeça, quem faz a distinção entre os intelectos são vocês. Sempre acham que o simples é burro. Em criança acredito que você afirma só ter lido Monteiro Lobato. Pega benzão. Gostava dele, e muito, mas me acabava nas revistinhas, adorava a Luluzinha.
— Lastimo por ti, lastimo pela sociedade. Vives num mundo falso, de brincadeiras inconseqüentes.
— Tem certeza de que foram as pequenas cabeças que fizeram as guerras?
— Estes conflitos fazem parte do aprimoramento de qualquer civilização.
— Cabecinha, acho melhor pararmos de discutir. Fique com seus delírios e deixe-me ter fantasias aleatórias. Vai fazer o quê hoje à noite?
— Vou ler Nietzsche! E você?
— Leio sempre o Nietzsche. Adoro a frase dele “O inimigo mais perigoso que você poderá encontrar será sempre você mesmo”. Mas hoje vou a um “bundalelê”, no bar do Martinho da Vila. Vamos pedir um chopinho?
— Não posso beber, pois tomo Lexotan, três vezes ao dia, há mais de vinte anos.

“Independente da evolução atual da humanidade, a filosofia traduz o sentimento do ser humano na busca de si mesmo e do verdadeiro sentido da existência.”

E qual é o sentido da vida, mamãe? Pergunto a você, mãe, que nunca leu Nietzsche e vivia com um sorriso no rosto, balançando seu traseiro.

2004/ Livro PreTextos
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 29/06/2005
Alterado em 03/10/2008
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