Carta que não foi enviada


                                Rosa Pena


(carta que minha mãe gostaria de ter escrito a meu pai)

* A Jorge e Evelin, meus pais




Rio de Janeiro, 12 de junho de...

Meu querido Jorge:

Marido amado, amante adorado, amigo maior, eterno namorado. Foi o que imaginei colocar lá no alto, mas preferi pôr teu nome. Ele é o sinônimo de tudo.
Vejo nossas filhas adultas, maduras, casadas. Vejo nossos netos já em faculdades, vejo teus cabelos já ralos e totalmente brancos, vejo minhas pernas trêmulas, antevejo a nossa separação de corpos em breve, apenas de corpos, visto que quando nos conhecemos nossas almas quase se juntaram em definitivo. E lá vão mais de cinqüenta anos juntinhos, com algumas brigas, pois tu foste um farrista de marca maior, movido a um bom vinho e a um rabo-de-saia. Acho que os homens de nossa época aprenderam que infidelidade significa virilidade, estou certa? Pois bem, sempre morri de ciúmes, sabes bem, e chorar? Ah! Chorei muito, mas as mulheres de minha época aprenderam a silenciar e sublimar. Eu, porém, não silenciei. Acho que fui uma das pioneiras neste tal movimento feminista, pois rodei a baiana, como falam atualmente, quando te peguei em flagrante com aquela mundana. Por essa não esperavas, e botaste o galho dentro, como diz agora nosso neto.
Esse fator foi decisivo em nossa relação, a tal rodada que dei, já que naqueles tempos não se discutia tanto relação como agora. Aliás, vivo me perguntando se adianta, pois nossa afilhada discutiu tanto a relação que terminou em separação do tipo civilizada, “bons amigos”, mas nunca mais vi o meu quase genro e ele é chamado de famigerado
por ela. Amigo famigerado, não por boa fama, e sim por outros motivos. Um pouco fora dos conformes, mas deixa pra lá.
Bem, após a nossa briga maior, tu te aquietaste um tanto e eu sublimei outro tanto.
De tanto em tanto veio nossa caçula, raspa do tacho, teu maior encanto.
Talvez por ter vindo tardiamente, já tinhas amadurecido, soubeste saborear verdadeiramente a delícia de ser pai. E os babadores foram poucos para tanto deslumbre.
Lembras o início de minha carta, onde digo que quase juntamos a alma em definitivo?
Fico pensando em nosso casamento e concluo que não deveríamos ter comemorado bodas de ouro no ano passado, pois casamento é união de tudo, e unidos mesmo estamos há cerca de quarenta anos. Mas vá lá! Que seja a vontade dos papéis, e não a do coração.
Fato é que só agora consigo dizer-te de forma clara o quanto te amei e amo, da mesma forma que só consegui tomar banho na tua frente quando me operei.
Será que perdemos tanto, como todos dizem? Senti-me plenamente mulher contigo, desde o início.
Acho que passamos nossa vida tentando desvendar mistérios um do outro, e em cada época fomos novidade um para o outro. Tento dizer isso para as meninas, porém elas não ouvem.
Afirmo que pêssegos devem ser saboreados devagar, mas comem depressa demais e ficam depois a chorar com o caroço nas mãos. Caroços vão para o lixo.
Mas meu amado, o maior segredo nosso, que nos levou a ficar juntos, nos amando, é que no jogo de nossa relação eu deixava sempre em ti a sensação de que ganhavas o jogo, e tu, em mim, deixavas a sensação de que eu é que controlava o jogo.
Isso nos fez parceiros, nos fez cúmplices. Jogamos em dupla, sem deixar a bola cair. Percebo que os casais modernos jogam como adversários. Saem ambos derrotados. Não consigo ver a vantagem, talvez seja minha esclerose, quem sabe?
Agora, no entardecer de nossas vidas, voltamos ao início de tudo.
Recomeçamos a namorar, e à moda antiga. Apenas de mãos dadas, apenas sorrisos, apenas beijos nas faces.
Como bons jogadores, sabemos que não se repetem as boas jogadas, criam-se novas, que talvez sejam as maiores delas. Como esta, meu amor.
Recomeçar contigo, como se novo fosse.
Então, feliz dia dos namorados!

Beijos,
Evelin



livro PreTextos de Rosa Pena
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 29/01/2005
Alterado em 12/04/2011
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