Obesidade amorosa

                                 Rosa Pena




Carla, minha sobrinha, nasceu quando eu ainda não era mãe. Ela virou meu xodó, meu treinamento intensivo para maternidade. Logo que iniciou o primário arrumou sua primeira grande amiga, aquela que a gente decreta como a melhor amiga e quer exclusividade. Carla foi à eleita e retribuiu de cara o título, nessa época não temos a menor idéia da responsabilidade em ser number one na vida de alguém.
Numa sexta-feira fui apanhá-la na escola e ela entrou no carro quietinha, amuada, com a boca torta de quem vai chorar. Percebi sua tristeza e tentei saber o motivo, mas o silêncio dos inocentes foi a eloqüente resposta. Deixei correr, sabia que na hora certa viria abaixo o motivo. Chegando em casa ela não quis almoçar e agora não era mais só a boquinha que estava fora do lugar. Ela toda, todinha desconjuntada. Não resisti e fiquei provocando seu desabafo com pequenas perguntas. Ela destravou a língua.

- Tia, amanhã é o aniversário da Carla, todo mundo já ganhou convite menos eu. Logo eu, a melhor amiga, esquecida!

- De repente ela quis convidar você de forma especial, pelo telefone, na intimidade a dois...

- Não, eu fui abandonada e tem mais, não falo nunca mais com ela, nunca mais (declarou taxativa).

Esta foi à primeira das medidas da lista provisória que tomou contra a ex-amiga. Trocar de lugar, de turma, de repente até chamá-la de gorda, fato que machuca mais que proibição de TV para quem tem uns quilos extras. Gorda! Na infância, na juventude, na idade adulta, na vida em geral é muito mais ofensivo do que ser chamada de filha da puta, nesse atual reinado da astenia, anorexia, bulimia.

Não quis intervir de imediato, elas que se resolvessem e também achei que as medidas não seriam cumpridas. Talvez pela minha experiência com os governantes, que sempre tomam medidas provisórias que não dão em porra nenhuma, ou até com as minhas próprias medidas afetivas de saneamento, que sempre acabam no primeiro beijo. As governamentais? No primeiro euro.

Sábado chegou e ela sem convite! Seu rosto era um misto de choro e raiva. Dava dó olhar pra ela. Resolvi falar sério sobre convivência com uma menininha de sete anos. Complicado, mas necessário. Busquei chegar ao seu nível explicando que todos nós temos um diabinho e um anjinho que buzinam em nossos ouvidos. Que o diabo provavelmente vai avisar que Carla é inimiga, que deve procurar uma amiga verdadeira e castigar a maldita com muito desprezo. Já o anjo vai afirmar que ela sem querer esqueceu ou deixou para depois e não deu tempo. Suplicará que dê uma nova chance, ou mais, que seja franca com a menina. Que ligue e pergunte o motivo.

Sei que para uma criança é muito difícil tomar a atitude mais sensata, porém, tenho convicção que é mais fácil para elas abrirem o coração do que para nós adultos, que sempre julgamos de antemão e condenamos sem a menor piedade. Aliás, ficar na bronca parece ser “um barato”, pois vejo esta prática ser bem difundida. Ficar.Puta.Com, daria um site com recorde de visitas.

Carla, tamanha à vontade de ir a festa, escolheu o conselho do anjinho. Ligou para desejar um péssimo feliz aniversário para a “ex” amiga. Aos pouquinhos, na conversa, começou a brotar um sorriso no cantinho da boca. Ela pediu um momento e saiu correndo atrás da mochila da escola. Retornou com o convite na mão todo manchado de chocolate. Depois de juras de amor para a ex-inimiga, antiga e futura amiga, desligou pulando de felicidade. Ao ver meu olhar curioso percebeu que eu merecia saber o motivo da mudança.
- Eu sou tão especial, que meu convite estava dentro de um bombom que ganhei dela na terça passada. Só que eu não abri, achei que o chocolate tava com cara de velho, mexido.

Nada falei. Dizer o quê? Sorri e a chamei para ver meu pequeno baú de recordações (aos vinte e dois ainda era mínimo). Pedi que me ajudasse a abrir alguns bilhetes não respondidos, números de telefones que nunca disquei, presentes que ganhei na vida e os deixei de lado, por causa da embalagem com cara de mexida.
- Veja a quantidade de convites para amizade que não retribui, pois o diabinho falou mais alto.
Acho que não ela entendeu muito na hora, mas um pouco sempre fica.

Já fui julgada por alguns como melosa demais, pois até hoje busco ler um pouquinho mais a alma do meu ex, atual, futuro amigo, que está escondida em alguma embalagem com ou sem laço bonito. Está valendo abri-las. Que solidão deve bater nos que não se dão ao trabalho de desembrulhar nada. Perdem deliciosos bombons de afeto, que engordam só o coração, um liberto da balança. Que venham caixas repletas, sou compulsiva em amor. Quero ficar obesa dele.



Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 27/09/2006
Alterado em 04/07/2008
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