Butterfly sem Madame

 
Rosa Pena

 
Entrou no piano bar com a cara inchada de tanto chorar, luxo que não se pode ter, ainda mais na sua idade. Final de expediente de uma quinta-feira chuvosa. Local de casados que tomam o último drinque do dia para relaxar, antes de ir para casa e encarar o outro negócio, um casamento que é apenas uma associação de interesses mútuos, onde separar custa uma grana. Business to business. Celular lado a lado com o Martini. De vez em quando um tocava, e o silêncio reinava. Era uma das madames procurando o fujão. Cumplicidade na escapulida, condescendência geral por se reconhecerem entre si, todos viúvos da felicidade. Pediu um copo de vinho e ficou ouvindo o som do dedilhar quase automático do pianista, que sabia que ninguém ia reparar se ele errasse uma nota. Era apenas parte do cenário, assim como ela em sua casa. A cena só ficava completa com os quatro lugares ocupados na mesa de jantar. Um pai, uma mãe e dois filhos lindos. Valia uma foto num calendário.
Ter aquele amante a incomodava, metamorfose ao contrário, ela saía dos encontros se sentindo uma larva nojenta, enquanto em casa era uma borboleta que não voava, butterfly imbecil, mas era melhor que ser larva.
Terminou de vez, e bem rápido, com o Guto. Que história é essa de pedir que ela se separasse do marido e fosse com ele para a Grécia? Tinha uma família, ora bolas!
Ele vai hoje de vez, daqui a duas horas. Paciência. Outro virá para tirá-la da mesmice daquele bar, daquele lar.
A despedida foi na areia, o mar batendo suave e depois mais forte. Adoravam o mar, e em seus devaneios a dois, sonhavam viagens como as do Amir Klink.
Lembrou-se das palestras do Amir, em que ele narrava muitas façanhas, mas uma ficou gravada em sua memória. Contou que quando chegou ao Pólo Sul, dormiu muitas horas seguidas. Quando acordou, começou a andar pelo barco, e percebeu que as cordas estavam cheias de gelos pendurados, como sinos de cristal, num formato belíssimo, jamais visto. Correu sem cuidado para buscar a máquina e tropeçou numa das cordas, deixando o fantástico cenário despencar. Como ele ainda ficaria por um bom tempo lá, não deu muito valor ao fato de imediato. Tiraria as fotos dos fenomenais pingentes em outra ocasião, mas para a sua tristeza aquela maravilha nunca mais ocorreu.
— Garçom a conta urgente, e chama um táxi que me leve ao aeroporto!
— Aconteceu algo?
— Sim, eu andei dormindo demais, e preciso impedir que os sinos se quebrem, pois nunca mais terão outros iguais.

 

Saiu voando, desta vez uma esplendorosa butterfly, mesmo que não madame.

Livro UI!
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 30/05/2005
Alterado em 18/04/2009
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